Crítica: O Grande Circo Místico

Coberto por uma atmosfera de ansiedade e torcida, O Grande Circo Místico, representante brasileiro para possíveis indicações ao Oscar, é mais circo que propriamente película. Mais nova obra do veterano Carlos “Cacá” Diegues, um dos poucos nomes que ainda goza de respeito e causa rebuliço por terras tupiniquins, entre seus trapézios de realismo fantástico e sua corda bamba de ampulhetas, a obra faz um recorte geracional, onde chega a arranhar um denso questionamento sobre as convulsões da sociedade brasileira, todavia se perde em seus incontáveis malabarismos.

Com trilha sonora arrebatadora (com Chico Buarque, Milton Nascimento e companhia é fácil), primor técnico raro e a inspiração pulsante em Jorge de Lima, o filme falha nas estruturas primordiais, com construção de personagem precária, um ritmo estalactítico e escalações de elenco muito equivocadas. A primeira parte da obra por exemplo se vê profundamente comprometida pelo pífio e patético desempenho de Rafael Lozano (Fred).  Menos mal que as atuações do sempre excelente Vicent Cassel (Jean Paul) e de uma irreconhecível Mariana Ximenes (Margarete) terminam por deixar o placar em zero a zero. Entretanto o que nunca é de fato amenizado é o pouco tempo que os protagonistas têm para se desenvolver, como Diegues busca quase um século de narrativa, os personagens flutuam rápido demais sem que o espectador consiga construir um laço afetivo com qualquer um deles.

Com suas faces esfaceladas e a introspecção, a partir do contato com os personagens, comprometida, a trama engatinha desmilinguida, ora muito rápida (nas primeiras gerações), ora muito lenta (nas últimas). Torna-se inconstante e vai perdendo o público em meio a uma teia de eventos cada vez mais difusa. A própria pegada de realismo fantástico, pastiche de Gabriel García Márquez, nunca de fato engata, apesar dos gigantes e do atemporal e sobretudo esforçado personagem de Jesuíta Barbosa (Cestlavi). Até mesmo a exuberância circense parece escorrer pelos dedos do filme, com alguns números pouco criativos e forçados, efeitos especiais desalinhados e uma plateia itinerante.

Mesmo assim, talvez por milagre, sobra ali uma fagulha de brilhantismo na busca por um retrato da magia do espetáculo sob a luz do tempo. Diegues é particularmente feliz ao despir certas máscaras morais e compulsões éticas no intuito de rastrear uma cadeia de determinismo familiar. Todos presos a uma engrenagem dos mesmos erros, das mesmas doenças, das mesmas miragens salgadas em pecado, onde o circo é então o alívio, a fumaça. Numa família coberta de feridas imemoriáveis é fardo e graal. Tudo isso ilustra com certa felicidade o próprio país, de inflamações anciãs e escapismos ainda mais antigos.

Ainda ao mostrar o picadeiro em ruínas com a onda do puritanismo moral que é em si só o maior dos circos enrustido em vitrais, a obra ganha traços contemporâneos e sinceros. Servindo como manifesto de  um tempo onde o mero riso ganha ares de resistência. A tentativa de mostrar pelo circo que a mística não vai cessar enquanto houver o  irreprimível anseio pelo dionisíaco é comovente, ainda mais em tempos como hoje, onde se parece que tudo vai ser lavado pelas balas de um fuzil. Porém, infelizmente, nunca se materializa de fato no espectador, porque no fundo o maior anseio é por um filme que iguale sua pretensão de espetáculo.

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