Crítica: Serei Amado Quando Morrer (They'll Love Me When I'm Dead)

No mesmo dia em que a Netflix disponibilizou “O Outro Lado do Vento“, o mais novo filme de Orson Welles, décadas depois do início de suas produções e também da morte do diretor, ela também disponibiliza o documentário Serei Amado Quando Morrer, que conta a história acerca da produção daquele filme. Talvez como uma tentativa de justificativa para espectadores desavisados que entrarão numa montanha russa desgovernada e, provavelmente, sairão da exibição um tanto quanto tontos e desgostosos (o que não ocorrerá com aqueles que tem grande intimidade com o Cinema). Este documentário reconta o processo de produção de “O Outro Lado do Vento” a partir de pessoas que participaram diretamente da criação da obra ou que estiveram juntas daqueles inseridos na equipe. Mais do que um making of, o filme é um retrato da figura enigmática de Orson Welles.

Como falamos na resenha de “O Outro Lado do Vento“, Orson Welles estava em uma descendente cruel, saído do topo – pois era considerado um gênio – e chegando ao fundo do poço com a suposta “traição” pela rejeição à sua pessoa por parte de Hollywood. “Los Angeles é o único lugar em que todas as ruas levam ao aeroporto. Hollywood quer sempre que você vá embora”, dissera certa vez o cineasta. Tal qual sua ilustração, ele também foi embora, em um semi-exílio na Europa. Seguiu trabalhando em produções menores e nunca conseguindo grande destaque para novos projetos. Isso não o impedia de se debruçar sobre novas idéias e iniciar diversos novos trabalhos. Mas o risco que corria era o que inevitavelmente acontecia: muitas obras sem conclusão, por um sem-número de motivos. Entre estes, aquela que aparenta mais afeto por parte de seu autor: esta que conseguiu ser concluída e lançada pela Netflix.

O jovem gênio de outrora.

Sua sugerida soberba associada a uma série de questões pessoais – que abalaram seu emocional e tiveram consequências na forma como passou a se relacionar com as pessoas – fizeram de Welles uma figura que investia em sua visão. Um artista propriamente dito. Acima de qualquer outro – mas, mesmo assim, havia muitos – ele acreditava em seu dom. “O Outro Lado do Vento” fora concebido como um filme quase de improviso, a ser feito a partir de “acidentes divinos” todo ele – Orson acreditava que um filme é preenchido de vida quando um “acidente divino” ocorre durante as filmagens, trazendo algo inesperado à narrativa e que, ao ser absorvida na criação, gera algo primoroso. Sua tentativa com esta produção de décadas era que assim fosse, um grande e único “acidente divino”. Sua pequena equipe – devido aos escassos recursos – comprava sua ideia e quando questionavam se aquele sacrifício estava, de fato, indo a algum lugar, justificavam-se: “Welles tem tudo sob controle”.

Quase como uma ode à sua pessoa, o documentário sobre seu filme de décadas faz questão de pontuar o quanto a indústria do Cinema – e aí podemos inserir o jornalismo cinematográfico, bem como o público da Sétima Arte – foi empurrando seu gênio de outrora a lugar escuros, cuja névoa sombria poderia encobrir seus novos feitos. E assim se sucedeu. Ao assistir a perspectiva daqueles que estiveram diretamente ligados à produção de “O Outro Lado do Vento” e que estiveram unidos pessoalmente a Welles, ficamos com certeza ainda maior de que o afeto em relação a esta produção, até então, não concluída se devia por ser uma tentativa de exorcismo de seus fantasmas e demônios. Uma denúncia a toda uma cultura industrial da Arte. Um ato de rebeldia. “Quanto mais envelheço, mais rebelde fico”, dissera algo semelhante em uma entrevista Orson Welles. E em que medida a própria indústria financiaria uma pesada crítica a si mesma? Sem ela, tampouco poderia resistir a resistência de um soldado abatido. Mas Welles seguia seu caminho. É extremamente difícil não continuar a produzir um filme que seja se tudo o que se pensa e vê se faz como se estivesse observando através da lente de uma câmera.

O artista consumido pela rejeição.

Montado e fotografado à imagem e semelhança dos filmes de Orson Welles, Serei Amado Quando Morrer traz algumas curiosidades acerca desta figura tão adorada, mas ao mesmo tempo tão rejeitada, de Hollywood e do Cinema em geral. Lançado junto com o filme sobre o qual fala, o documentário surge não só como um ato de justificativa para aquela obra de décadas, mas sobretudo como mais uma voz de resistência acerca do Cinema autoral, que, ao que nos parece, vem cada vez mais perdendo espaço em um mundo plástico, meramente estético, vazio de significado, que preza por sensações espetaculosas, mas nada espetaculares. É um berro pelo amor do Cinema, por parte daqueles que deram suas vidas por isso.

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