Crítica: Lazzaro Felice

“Os humanos são como animais. Você os liberta e eles percebem que são escravos, presos na miséria deles. Agora sofrem, mas não sabem” define a Marquesa que faz o papel da exploradora no belíssimo filme Lazzaro Felice (vencedor de melhor roteiro em Cannes 2018), dirigido por Alice Rohrwacher, enquanto, do alto de sua “torre de marfim”, observa atentamente seus trabalhadores em caminhos cíclicos – tal qual o eterno sacrifício de Sísifo – como abelhas operárias em produção contínua. Analisando ainda mais sutilmente, ela mantém sua sóbria e obscura – mas tristemente certeira – leitura acerca da realidade: “eu tiro proveito deles e eles tiram proveito daquele pobre coitado”, apontando para o protagonista do conto, o garoto Lazzaro, “é uma reação em cadeia que não pode ser evitada”.

Lazzaro (Adriano Tardiolo) é um garoto que vive com seus familiares e conterrâneos em uma vila camponesa na Italia. Sem escola, sem conforto ou qualquer tecnologia, eles vivem suas vidas trabalhando para a supracitada Marquesa, dona daquelas terras. Mensalmente, um cobrador – a serviço dela – faz a contagem da produção e sempre resulta que os camponeses devem cada vez mais, portanto não ganhando salários e mantendo uma economia de subsistência com o que o solo oferece. Apesar disso, o menino Lazzaro passa por seus dias com felicidade inabalável de modo a pensarem que ele tem algum tipo de problema mental, ainda que sutil. Mas não, ele é tão somente a personificação da bondade e inocência, não vendo que o homem – mais uma vez citando Hobbes – é essencialmente o lobo de si mesmo; o predador que, na reação em cadeia inerente à sua natureza, sufoca mais e mais seu próximo. Um quase canibalismo das relações pessoais. Esse é o ser humano. Mas, para Lazzaro, parece apenas sobressair de cada um a centelha divina que todos também carregam.

As abelhas ou os Sísifos reais.

A história simples e cotidiana, que poderia flertar com qualquer momento medieval, se revela um conto contemporâneo, o qual ainda guarda essas relações humanas dos primórdios da humanidade. Desde a cena em que australopithecus exploram a si mesmos, em “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, até hoje o homo sapiens segue nessa abominável lógica imutável. Apesar disso, o dia-a-dia daqueles camponeses sofre uma bruta transformação quando a marquesa e seu filho vão visitar a propriedade chamada Inviolata. Nesse momento, o filme ganha contornos de fábula e a narrativa vai em um crescendo rumo ao sensível e ao tocante. Quebrando com a estrutura que se apresentava a mais realista possível, a diretora propõe uma mistura de antíteses que mesclam harmoniosamente o real e o irreal, a perversidade e a bondade, a maquiavelice e a inocência.

A direção, que preza por um estilo naturalista de filmagem, fazendo da fotografia mais um elemento a compor este mosaico de expressão verdadeira é, em muito, alavancada pela atuação primorosa de Adriano Tardiolo, ao trazer no olhar de seu personagem Lazzaro a bondade, a inocência e a felicidade marcantes em cada gesto simples e ordinário dos movimentos de um camponês sempre pronto a ajudar quem quer que seja, quem quer que esteja ao seu lado. Como se fosse o seu dever, o seu instinto primário, não sobreviver, não pensar em si em uma ação a priori egoísta porém natural, mas fazer o bem, independente da circunstância ou do contexto; independente, sobretudo, de quem se apresente como este outro. Como se sua vida se resumisse a um constante e infinito exercício de afeto. E, talvez, é isso que o torna, de fato, feliz – como traz o título do filme e sua feição, que não muda.

Lazzaro feliz.

Falando sobre a construção da sociedade humana a partir de uma narrativa envolvente e simples, provocando o espectador com supostas indefinições temporais, mas que se revelam argumentos concretos para seu posicionamento pessoal, Alice Rohrwacher fala duramente sobre o real com elementos que flertam com o fantasioso, conseguindo maior profundidade e beleza em seu memorável conto sobre as relações de poder. Um poderoso ensaio sobre a natureza humana e seu caráter imutável, cíclico e caótico, cuja estrutura imperativa pode ser facilmente abalada por um simples gesto de bondade, como prova em cada ação sua o feliz garoto Lazzaro.

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