Crítica: O Beijo no Asfalto

Nelson Rodrigues é, sem nenhuma sombra de dúvida, o pai do teatro moderno brasileiro. A revolução que nossas artes experimentaram com os paulistas em 1922 só seria manifestada nos palcos quando na década de 40 Nelson traz ao mundo a poderosa Vestido de Noiva. Seu legado se embrenhou pela cultura nacional e o cinema bebeu, dezenas de vezes, na fonte de suas peças. Quando se achava que nada de novo se podia espremer do velho Nelson, eis que um ator famoso, estreando na direção cinematográfica, consegue reinventar um clássico.

O Beijo no Asfalto, peça de 1960, faz parte do ciclo rodrigueano que ficou conhecido como “Tragédias Cariocas”. Nele, Nelson transpunha para os subúrbios da zona norte do Rio os elementos das tragédias gregas, misturados ao melodrama e às entidades clássicas da baixa burguesia e de seu teatro: as tias solteironas, as filhas noivas, os cunhados vagabundos, as cunhadas lolitas e proibidas. Aqui, Arandir (Lázaro Ramos) vê a sua vida ser destruída quando um gesto de misericórdia seu, o ato de beijar na boca um atropelado que morria em sua frente, é transformado em um circo midiático por um jornalista mau-caráter, Amado Ribeiro (Otávio Müller em impecável performance), e um delegado da pior estirpe (Augusto Madeira).

Das peças do nosso dramaturgo-maior talvez O Beijo no Asfalto seja a que mais fale diretamente à contemporaneidade, ao abordar temas como fake news e corrupção policial. Assim, o diretor Murilo Benício tinha em mãos um texto que reverberava ainda hoje. O desafio maior era o comum a produções cinematográficas baseadas em textos dos palcos: como transformar aquilo em material para as telas e fugir do efeito “teatro filmado”, que, se por vezes cria coisas geniais como “Dogville”, de Lars von Trier, na maioria das vezes revela-se completamente entediante. E a produção tomou uma decisão ousadíssima e maravilhosa: assumiu a teatralidade ao máximo para, então, criar cinema. O que soa, também, como uma homenagem ao próprio Nelson Rodrigues, responsável por trazer o hibridismo ao teatro brasileiro e pondo, em várias cenas de suas peças, projeções cinematográficas.

O filme, numa manobra genial, se concebe em três faces. Primeiro, como a filmagem do ciclo de leitura e ensaios do texto. Assim, ao redor de uma mesa, você tem os atores, capitaneados pelo diretor Amir Haddad, lendo o texto de Nelson, discutindo a peça e suas personagens, ao mesmo tempo em que as constroem. Segundo, você tem os atores já caracterizados fazendo as cenas teatralmente para, por fim, o espectador ser conduzido a sequências puramente cinematográficas, ampliando os limites do texto. Só que tudo isso se dá simultaneamente e sem ordem pré-estabelecida, através de uma edição que, fora pouquíssimos momentos de quebra de ritmo causados mais pelo “peso” de um outro termo datado do texto do que pela edição em si, há que entrar para a história como uma das mais criativas do cinema nacional. Os atores leem, surgem numa “cena de cinema” que se revela uma cena em um teatro real. A cena em que, por exemplo, Débora Falabella (Selminha, mulher de Arandir) é interrogada é de gerar espanto bom.

Desse modo, este  O Beijo no Asfalto é o clássico nacional que conhecemos, mas se amplia em uma discussão quase documental sobre a carpintaria da arte. O espectador, além de embarcar na narratividade da história, também se esgueira pelos bastidores (literalmente em algumas cenas) do fazer artístico. É delicioso observar as leituras, ver as personagens chegando prontas para alguns atores, sendo construídas ao pouco por outros, ao mesmo tempo em que se observa a maquinaria cinematográfica, microfones, trilhos, cenários.

Estreando nas funções de diretor e roteirista, Benício se cercou de uma equipe a que poucos veteranos têm acesso. Começando pela impecável, estilosa e belíssima fotografia em preto-e-branco assinada pelo, talvez, maior diretor de fotografia do Brasil: Walter Carvalho. A junção da estonteante fotografia aos intrincados jogos de câmera do diretor faz com que eles se abasteçam mutuamente, criando uma sensação genuína de prazer estético-visual e reforçando o hibridismo da produção. O roteiro, por sua vez, exibe uma fluidez tão forte, fruto talvez da experiência de ator de Murilo Benício, conhecedor de como o texto fica “na boca” e não só “na página”, que naturaliza a dicção do original de forma bastante prazerosa.

A estreia de luxo ganha as cerejas do bolo no elenco. Lázaro Ramos faz jus ao título de queridinho do cinema brazuca, construindo um protagonista de forma bastante sincera e emocional. Otávio Müller rouba a cena com seu cafajeste jornalista, enquanto Débora Falabella ergue uma Selminha muito bem construída e os demais membros do elenco conseguem todos exibir momentos de brilho. Agora, mais que cereja , um bolo inteiro talvez, seja a produção contar com a participação da diva maior Fernanda Montenegro, que foi a Selminha da montagem original dos anos 60, dando uma verdadeira master class sobre atuar (é incrível ver como ela transforma completamente uma fala entre uma leitura e outra), sobre a história do teatro brasileiro e rodrigueano e ainda refletir sobre questões contemporâneas como política e homofobia.

Se no primeiro filme, Murilo Benício já deixou essa assinatura, O Beijo no Asfalto nos faz torcer para que ele continue nessa trajetória múltipla. Tá de parabéns. Ah, leitor Metafictions, espere os créditos para sair da sala. Porque se não esperar, você vai perder a linda canção A Vida É Ruim, escrita por Caetano Veloso e cantada por Ney Matogrosso. É luxo que se fala, né?

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