Crítica: Tinta Bruta
Em determinado momento de Tinta Bruta, Pedro, o protagonista, solta a frase: “É o jeito como te olham”. Só quem faz parte de uma minoria social ou se comporta de forma não socialmente normatizada conhece o peso deste olhar. Ele está ali o tempo todo, incisivo, julgador, ainda que, por vezes, travestido em “tolerância”. Esse olhar dói. Somado à solidão intrínseca da contemporaneidade, o peso desse olhar gera atitudes desesperadas e/ou líricas.
Dirigido e roteirizado pela dupla Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, do premiado coming of age “Beira-Mar“, Tinta Bruta se centra nos dias de Pedro que, respondendo a um processo criminal que, entre outras coisas, o expulsou da faculdade e pode levá-lo à cadeia, e imerso em um caudaloso rio de isolamento, dança nu em seu quarto, coberto de tinta neon, enquanto estranhos assistem e pagam por performances eróticas via webcam.
O resultado cinematográfico disso tudo é estonteante. Estreando já laureado por dezenas de premiações incluindo o Teddy Awards do Festival de Berlim e os prêmios máximos do Festival do Rio, o primeiro grande mérito de Tinta Bruta é soar novo. De verdade. A originalidade do roteiro somada à direção preciosa e ao olhar peculiar de Matzembacher (eu repetiria esse sobrenome o dia todo, que som bom!) e Reolon trazem para o filme e para quem o assiste uma sensação de novidade e ousadia. É daquelas produções que o espectador precisa digerir ao longo dos créditos, porque o encanto visual – que já o tinha tomado durante a exibição – precisa de mais uns minutinhos para encontrar a racionalização. (Nota: assisti ao filme em uma cabine de imprensa. Nenhum dos críticos presentes se levantou durante os créditos. Todo mundo ficou lá esperando as luzes se acenderem.)
Diria, também, que, além do “cheiro” de novo, o longa, através de um inusitado expediente, consegue criar um “olho” novo. As movimentações de câmera são extremamente interessantes. Ao longo da história do cinema, a câmera tem se portado, na maioria das vezes, como um voyeur, percorrendo a cena como o olhar de fora, por vezes enxerido, outras, cúmplice. Aqui, a câmera se afasta dessa postura e se torna orgânica no sentido primário do termo, de ligar-se mesmo a corpos vivos. Parece o tempo todo que a movimentação do olho do filme parte ou das personagens ou do corpo do filme. A câmera de Tinta Bruta remete à definição de imagem para Bergson. Para ele, “imagem” não é só a imagem visual de um objeto, mas o complexo de todas as impressões sensoriais que o objeto injeta no observador em determinado momento. E é assim que a imagem desse filme se projeta, vê-se com o olho, mas se absorve com o corpo todo. Essa “corporificação” se amplia através da beleza da fotografia de Glauco Firpo, que consegue criar um efeito táctil no que se vê, algumas cenas “queimam”, outras “esfriam”. É uma orgia visual com altos níveis de orgasmo.
E, por falar em sexo, Tinta é um filme altamente erótico. Só que erótico no sentido batailleano do termo. Para o filósofo francês Georges Bataille, a experiência erótica traz em si um halo de morte, de violência. Afinal, não podemos esquecer que uma das manifestações mais pungentes do erótico se dá justamente na “invasão” de um corpo por outro corpo. O erotismo em Tinta Bruta é uma constatação da incompletude humana, da solidão das cidades grandes que nos engolem. Manifestando-se em afetos homoeróticos, essa percepção do isolamento e da dor que ele causa. já que , nesses casos, o peso do olhar a que me referi no primeiro parágrafo pode ser, real e metaforicamente, o peso de um soco na cara. É extremamente interessante como os diretores criam um erotismo-mórbido-lírico-belo-doloroso pela simbiose entre uma nudez necessária, uma imagem poética e uma trilha sonora espertinha que ecoa nas canções do Noporn e da Letrux.
No campo das atuações, o elenco pequeno investe num precioso método. Ao mesmo tempo em que fogem do naturalismo mais comum nas telas, não embarcam na teatralização que soaria forçada na proximidade que a câmera traz para o cinema. Assim, o filme se aloja em uma espécie de “limbo” poético, criando de forma bastante curiosa um jogo cênico que se aloja em um belo espaço entre espaços.
E é aí que falamos de Shico Menegat, o jovem ator que dá vida ao protagonista Pedro. Leitor Metafictions, respire e esteja pronto para testemunhar, mais que um tour de force, um trabalho que me levou a cunhar a expressão tour de corps. Menegat se mostra vulnerável no sentido máximo da entrega a um personagem, técnico e instintivo ao mesmo tempo. Seu Pedro se lança à tela com uma força e uma veracidade potentes, que contrastam com sua personalidade interiorizada e solitária e reforçam a complexidade da personagem. Pedro está inteiro no filme porque seu intérprete possui consciência e intuição de quem ele é. Meu dicionário pessoal exibe agora a expressão “olhos de Shico Menegat”, a ser usada em ocasiões nas quais um único olhar der conta de um momento inteiro. É um trabalho realmente impressionante e belo, que consegue criar mais que empatia em relação à personagem, consegue trazer um senso de entendimento ao espectador. Em alguns momentos, por exemplo, o espectador há de sentir-se até constrangido por chegar tão perto de “alguém” que ele acabou de conhecer.
Por fim, o fim. Não satisfeito por ter acertado em todos os quesitos, a última imagem de Tinta Bruta é poesia visual pura. Não vou dar spoiler dela, mas que coisa linda de se ver (alguém faça um gif, please). Não dou spoiler, mas deixo uns versos de Ana Cristina Cesar que evocam a força dessa última imagem: “Agora, imediatamente, é aqui que começa o primeiro sinal do peso do corpo que sobe. Aqui troco de mão e começo a ordenar o caos.”
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