Crítica: A Esposa (The Wife)

Ainda que de maneira desconfiada, inclino-me à seguinte citação de Simone de Beauvoir: “Não são as pessoas que são responsáveis pelo fracasso do casamento, é a própria instituição que é pervertida desde a origem.” Respire. Não estou aqui pra atacar casais por aí, muito menos a validez de amar alguém, mas para refletir tendo como partida essas palavras. O conceito do casamento tradicional (submissão, abdicação, devoção incondicional, repressão e/ou fuga) é o alvo da crítica de Simone, e durante toda a sua vida a filósofa tentou seguir coerente na crença em um relacionamento alternativo, que considera o indivíduo como completo antes de ser esposa ou marido ou mãe ou pai. Nesse sentido, flerto descaradamente com as teorias de Simone. A origem do casamento, segundo ela, está na anulação da autonomia, já que elas acabam se sobrepondo e não formando uma harmoniosa extensão de seres.

Tal peso cai mais pra cima da mulher, é claro, sob diversas perspectivas. Joan Castleman (a espetacular Glenn Close) carrega nas costas fardos e flores das “escolhas” (e que escolhas, de fato, tinham as mulheres nos anos 50…) de sua juventude. Apaixonada, jogou-se nos braços de Joe Castleman (Jonathan Pryce) quando era ainda uma estudante universitária e ele seu professor. A clássica história de mulher mais nova encantada com um homem mais velho em posição de poder, inserida dentro de uma estrutura que grita a seus ouvidos que, enquanto mulher, é preciso ter do lado uma figura protetora.

Joan e Joe no início de suas jornadas, marcadas pela literatura, ambição e obsessão.

Décadas depois dessas decisões joviais, um evento engatilha intensas reflexões e revisitas ao passado: no ápice de sua carreira, Joe ganha o Prêmio Nobel de Literatura e o casal viaja para Estocolmo para a cerimônia. Diante desse ápice, podemos ver toda a dinâmica do casal, que consiste em Joe ser o artista, o boêmio e todo um estereótipo de escritor (como infidelidades incontáveis) e Joan ser a esposa que está a seu lado, como um alicerce. Como se fosse feita para isso e nada mais.

É um tanto triste – mas não inteiramente, já que a mulher faz questão de dizer que não é uma pobre coitada, vítima do destino. A impressão que aquela rotina transmite é de um prisioneiro que tem a chave nas mãos, mas, por algum motivo, não abre a fechadura de sua cela. Conforme a narrativa se desenvolve, vamos pensando junto à Joan o motivo. Por que? Por que? Por que se contentar com o cargo de kingmaker, segundo ela mesma chama? Por que estar naquele casamento que, apesar do inquestionável companheirismo, é desigual?

“I’m a kingmaker.”

O destaque vai inteiramente para a magnífica atuação de Glenn, que é quem dá ao filme alma, poder e sentido. A atriz dá vida à uma mulher segura cuja personalidade vai contra a esposa fútil, troféu, vazia. Uma mulher com amargores mas que, tamanha sua elegância e sabedoria, jamais os deixa entrar na frente do que sua moral lhe diz importar. Valores sólidos, custe o que custar; é o segredo para que o longa seja tão impactante.

Por fim, certamente faz questionar os ditos certos e errados em relacionamentos, a validade de agir de certa forma e o que é lealdade, fidelidade e companheirismo. Uma inesquecível imersão à reflexões como a de Beauvoir só que no audiovisual; e só tenho que agradecer a honra que é ter tais tipos de devaneios em uma sala de cinema.

Casamento… ou contrato social?

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