Crítica: A Favorita (The Favourite)
“Intranquila repousa a cabeça que usa uma coroa”, diz Henrique IV no terceiro ato do drama shakespeariano. Cansado, doente, cercado de inimigos, o rei sente o peso de sua coroa. Mais de 300 anos depois de seu reinado, uma companheira de “trabalho” sua, a Rainha Anne da Inglaterra (Olivia Colman), sentiria as perturbações que essa coroa traz. Deprimida, frágil, sofrendo pelas 17 gravidezes malsucedidas, ela busca conforto, amor e sexo na ardilosa Lady Sarah (Rachel Weisz), que governa, de fato, o país. Até que a chegada de Abigail (Emma Stone), uma jovem dama de uma família falida, muda os rumos dessa relação. Tão sagaz quanto Lady Sarah, ela enxergará na possibilidade de se tornar a nova queridinha da rainha uma chance de recuperar a glória perdida. É nesse jogo de gatas e uma ratinha coroada que se desenvolve a trama de A Favorita, de Yorgos Lanthimos, que estreia nesta semana no Brasil laureado por suas dez indicações ao Oscar 2019.
Meus leitores Metafictions sabem que histórias da monarquia inglesa despertam a nobreza deste crítico (a ponto de pensar que teria que usar subterfúgios pouco nobres caso um de meus colegas quisesse usurpar a crítica deste filme de mim). E, de cara, Lanthimos marcou um golaço de placa (esse esporte bretão que se deu bem aqui): seu longa não se parece com nenhuma outra produção sobre o tema. Soar totalmente novo em uma seara tão visitada pela sétima arte é uma qualidade muito, muito especial. Todos os riscos corridos nessa ousadia valeram muito a pena, porque o filme é uma beleza.
Primeiro, A Favorita oferece um interessantíssimo desvio na representação da corte inglesa. Tradicionalmente mostrada como mais contida, sisuda e fria que suas contrapartes europeias, aqui essa imagem é reavaliada. Passada em sua maior parte em corredores, bastidores e quartos (lindamente filmados através da potente fotografia, que se aproveita magicamente da luz natural, de janelas e de velas, além da direção de arte sem nenhum defeito), a produção mostra o lado B dos royals. Assim, somos levados a uma corte lasciva, futriqueira, suja, na qual interesses, taras, fome e tesão gritam por baixo da pose British posh.
Esse olhar diferenciado se faz notar em cada detalhe e escolha da marcante direção. Os ângulos que a câmera percorre em cena são de cair o queixo, tamanha a técnica e a ousadia. Apoiado em uma das melhores montagens dos últimos tempos, o diretor cria um filme de ritmo marcante, incapaz de criar no espectador um único momento de tédio. É filme para se ver vidrado, a tela pulsa.
Nada disso seria capaz de acontecer, no entanto, sem um roteiro genial. Yorgos Lanthimos é um diretor famoso por dirigir roteiros escritos por ele mesmo. Pela primeira vez em sua carreira ele executa o texto de outrem. E que texto, senhores! Assinado por Deborah Davis e Tony McNamara, o roteiro de A Favorita equilibra impecavelmente o humor, o drama, a tragédia e o thriller. As frases ditas pelas personagens são antológicas. Tanto que as partes do filme são marcadas por um recurso muito legal: cada uma delas mostra uma frase que será dita em algum momento. O espectador se pega esperando (e apostando em sua cabeça) quem dirá a fala daquele momento.
E tudo isso ainda não mostra o melhor do longa que é o trio de atrizes. By George! Que trio! Embora para questões de premiações (leia-se malandragem), tenha-se vendido Colman como protagonista e as outras duas como coadjuvantes, o que acontece aqui é, na verdade, um caso de co-protagonização. As três personagens comandam o olhar do longa. E cada uma dessas maravilhosas intérpretes consegue trazer algo único para sua atuação e, ao mesmo tempo, funcionar completamente como uma unidade de ação.
Olivia Colman (que parece que agora se especializou em rainhas, já que assumirá o papel de Elizabeth II na próxima temporada de The Crown) executa sua Rainha Anne através de camadas e mais camadas de atuação. Atriz-cebola, ela exibe uma multitude de profundidades em uma única personagem. Em uma mesma cena ela vai do histrionismo mimado de rainha à amargura de uma mulher machucada pela saúde frágil e que transfere para seus coelhos de estimação a dor da perda de cada um de seus filhos. Rachel Weisz escolhe o caminho da força para erigir sua Lady Sarah. Em cena, cada uma de suas expressões e inflexões revelam a competência técnica de uma atriz em pleno domínio do seu trabalho. É uma aula de interpretação segura, por plena não por falta de ousadia. Já Emma Stone brilha por sua excepcional presença em cena. É muito marcante como é um traço consolidado em seu trabalho uma forte consciência do jogo de cena. Stone “pega” o clima e joga com ele, se torna parte dele.
Caro leitor Metafictions, pegue seu chá e sente confortável na sala de cinema mais próxima nesse fim de semana. Vai ser impossível não favoritar este A Favorita.
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