Crítica: Vidro (Glass)

Era o ano de 2000, logo após o cartão de visitas do senhor M. Night Shyamalan ser apresentado para o mundo com seu sucesso “O Sexto Sentido”, ele lançava seu mais novo filme: “Corpo Fechado”, pessimamente vendido, tentando fazer aquele que assistia ao trailer esperar algo sobrenatural como tratara em seu título anterior. Ocorre que este não seguia essa temática e a falsa expectativa criada resultou em análises muito ruins acerca da obra. Ao revê-la, porém, sem olhos viciados, notava-se que o indiano-americano havia realizado uma produção sobre super-heróis, mas da forma mais intimista e humana possível, tanto que foi até mesmo eleito em nosso Top 10 – Filmes de Herói. Àquela época, as narrativas de personagens com grandes poderes ainda não eram o filão, no entanto. Anos e anos depois, ele volta ao mesmo universo com “Fragmentado“, acertando em cheio ao remeter a “Corpo Fechado” em sua cena de conclusão. E, com sua chave de ouro, monta sua trilogia (algo tão almejado pelos atuais filmes de super-heróis) com o mais novo Vidro.

O destaque dessa obra reside no fato de, assim como nas duas anteriores, Night se pautar no caráter essencialmente íntimo de seus personagens, que se entendem super poderosos. Uma características de todas as suas obras é exatamente a construção de seus protagonistas, sempre lapidados com muito cuidado e profundidade. Seguindo esta lógica, após passar dois filmes focando em três pessoas, ele as junta na terceira parte, dando ao título o mesmo nome de um deles. “Eles me chamam de Senhor Vidro (They call me Mister Glass)”, fala o personagem encarnado por Samuel L. Jackson. Entre antagonistas e protagonistas, vilões e heróis, Shyamalan subverte uma vez mais a expectativa do público ao passear pelas fraquezas de homens que se entendem gigantescos demais, em detrimento de cenas espalhafatosas, com barulhos, explosões, esporros e vazios de sentido. Pelo contrário. O que não se costuma ver nesses filmes que se pretendem comerciais longos para vender bonequinhos e camisetas é o que se percebe em Vidro.

Os três na melhor cena do filme.

O vilão-mor, A Besta (uma das personalidades do personagem encarnado maravilhosamente por James McAvoy), é caçado pelo herói David Dunn (em boa performance de Bruce Willis, em sua revisitação). No entanto, no exato momento que apontava para ser o clímax da história, mas que ocorrera antecipadamente – isto é, o encontro dos dois -, descobre-se que a narrativa nos levará a caminhos muitos mais significativos do que uma briga de gato e rato dopados com grandes poderes. A Dra Ellie Staple (muito bem por Sarah Paulson), junto com a polícia, intercepta o confronto dos dois e os interna em uma clínica para pessoas com problemas mentais. A médica tem como trabalho fazê-los voltar à realidade mostrando que toda essa auto-crença de um super-herói interno é uma viagem quase esquizofrênica de cada um dos três. Nessa instituição, Dunn, Vidro e A Besta se reunirão e durante as investidas da cientista, cada qual passará a duvidar de si próprio acerca de suas habilidades anti-naturais.

Portanto, aquele passeio intimista presente nos outros dois títulos – que é o que realmente eleva as obras a algo superior no que tange esse tipo de história – também surge aqui como o foco principal. Para além do impacto que disso resultará em suas vidas, consequências começarão a ser sentidas naqueles que tiveram ou têm alguma relação direta com os três personagens em questão: o filho de David, a mãe de Vidro/Glass e Casey (a menina sequestrada pela Besta em “Fragmentado” – em mais uma boa apresentação de Anya Taylor-Joy) tentarão realizar alguma ação à medida em que vêem o trio aprisionado na instituição. A roupagem de super-herói vai se mostrando uma alegoria enquanto dá lugar a um filme sobre autoconfiança, autocrítica, autossugestão, alter-ego, e tantos outros elementos que florescem no íntimo de cada indivíduo e com os quais cada um tem que lidar, diariamente, em uma luta insistente de todos consigo mesmos.

“They call me Mister Glass”.

Temos aqui, mais uma vez – e devemos agradecer por isso -, um clássico de M. Night Shyamalan, contando com suas principais características narrativas. Mas, mais do que isso, temos aqui um exemplo de como uma temática que pode parecer batida e, em certo ponto, enfadonha demais por ter sido demasiadamente explorada, consegue graus tão mais profundos de significado quando colocada na mão de um artista.

Utilizando-se de um modelo de “super-homem”, Night vai no âmago das fraquezas que definem este reles animal que é o “simplesmente-homem”.

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