Crítica: As Ineses (Las Ineses)
O cinema argentino é fantástico. Para mim, especialmente quando se trata de comédias que fazem uso do recurso tragicômico na narrativa. As Ineses é um desses excelentes casos. Duas famílias vizinhas em uma cidade com alma de pequena, como Petrópolis por exemplo, têm suas vidas costuradas quando as matriarcas dão luz no mesmo dia. Carmen (Brenda Gandini) e Rosa (Valentina Bassi) são amigas de bairro até então; no entanto, após o parto, outras questões mais profundas surgem do que xícaras de açúcar emprestadas ou idas ao mercado compartilhadas.
Primeiramente, imagine os detalhes dessa família. A de Carmen, mãe de terceira viagem, é o padrão: brancos porcelana, classe média, olhos azuis transparentes, casamento estável. A de Rosa, mãe de primeira viagem, o padrão de ser o Outro no próprio país: negros, classe baixa, olhos castanhos mel, casamento instável. Agora, imagine a surpresa do argentino Pedro (Luciano Cáceres), marido de Carmen, ao pousar os olhos em um bebê negro claro – “tem algo errado com nossa filha” – e do brasileiro(!) Ramón (André Ramiro), companheiro de Rosa, em perceber a cor de sua filha que quase refletia de tão clara.
É interessante reparar as tensões que vão crescendo e a linha tênue que divide a resolução “civilizada” e a perda de paciência. Além disso, é explorado bem o elemento do racismo, já que aquele velho discurso de “não sou racista, tenho até amigos pretos, nada contra, MAS…” vem à superfície. A avó, a figura pintada tipicamente como doce (e que de fato é), carinhosa, maternal, reforça que “não teria problema algum em ter uma netinha ‘morena’ mas…”. Aquele racismo velado, racismo estrutural que todos nós carregamos, se torna transparente nessa situação constrangedora e inesperada vivida por todos no hospital.
Em contraste está também a figura masculina, com alguns denominadores em comum como a bronquice, o machismo, a grosseria, mas outros que os separam, como a forma de expressar essas características todas. Pedro é grosso, mandão, quer tudo do jeito dele mas coloca limites, mesmo que para mim sejam bem além do tolerável, dentro da dinâmica com Carmen. Já Ramón, mais sangue quente e menos castrado socialmente, extravasa as exatas características que pedro um pouco (bem pouco mesmo) reprime: grita, exalta-se, exerce bem menos sua sensibilidade. No fim das contas os dois são machistas chauvinistas, produto comum dos anos 80 em uma cidadela argentina.

A dúvida sobre ter havido ou não uma troca dos bebes não desaparece mas, em choque à ela, entra a identificação maternal quase que imediata ao segurar um pequeno que você gerou e, se não gera, depende de algo que só você produz e de cuidados que, imagino, você deseja muito dar. Como retirar um recém nascido de mães que acabaram de dar a luz? Seja lá quem for o bebê, o encontro sentimental é feito. A fragilidade está ali e o amor incondicional há meses sendo preparado para jorrar sobre aquele. E agora?
Duas meninas. Duas Ineses. Duas famílias. Duas criações, por vezes em paralelo mas pela esmagadora maioria perpendiculares. E uma dúvida que, aos poucos, vai deixando de ser relevante: ambas são amadas, convivem como se tivessem duas famílias e tratam-se com irmãs. É interessante observar o campo das possibilidades, contudo, que se abre diante de cada uma delas, devido ao núcleo familiar que lhes é aberto. O filme trata de forma leve, engraçada e honesta sobre ser mãe, pai, filha e avó. Deliciosamente traz nostalgias de uma infância mundana, através de atuações bem medidas e conduzidas. Um bonito retrato de amor e cuidado, As Ineses entrega um prato bem temperado e palatável, ao equilibrar sensibilidade com o comum.

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