Crítica: Guerra Fria (Zimna wojna)

“Os verdadeiros paraísos são os paraísos que perdemos.”

Marcel Proust na última parte do maior arranha céu da história da literatura, proclama essa frase, síntese de toda sua obra, todavia acima de tudo entranha viva do pensamento. Pensar é atingir os lugares privilegiados do passado e a partir deles reorganizar o presente. Se o Cinema, na concepção deleuziana, nada mais seria que o pensamento pincelado em tela, Guerra Fria é o fardo eterno de uma espécie, exposto como raciocínio implacável, mordaz, mas, acima de tudo, sensível de Pawel Pawlikowski.

Numa sinfonia de muros e fronteiras, o polonês borda a tragédia a partir de instantes privilegiados de um amor esparramado no tempo, contracenando. De um amor sobretudo sem pertencimento, que, como todo e qualquer amor, apenas se materializa na solidão. É a partir de seu preto e branco confessional e de uma câmara que corrói com movimentos suaves e ângulos cortantes, que Guerra Fria se paramenta na era dos sonhos para moer cada um, não com misantropia, porém com a sinceridade de quem compreende o fardo de Adão e Eva e a tragédia das bolhas de sabão que, ao se chocarem, estouram.

Nesse sentido o trabalho de Pawel Pawlikowski é exemplar. Munido de uma simplicidade de “Cenas de um Casamento”, do mestre Ingmar Bergman junto a uma afeição digna de Dreyer, ele é cirúrgico no mise-en-scéne da ausência, da conjuração do não-espaço. Os cenários, os diálogos, tudo grita em nome da busca e se dilacera na certeza que só existe perda. Em apenas uma hora e meia de filme, o polonês é capaz de enfeitiçar a audiência com um tango de sombras.

Afinal, não importam os lados, ou as falcatruas, as ideologias ou as escusas, a narrativa dos músicos fadados a se encontrar e se desencontrar pelas faces avessas do mundo está sempre aliada a melancolia dos anjos caídos, ao fado das caravelas partidas que nunca retornam exatamente ao mesmo porto. A película é impecável e um feito cinematográfico colossal por tirar da intimidade, de seu retrato gélido e musical um reflexo de um mundo refém dos mesmos demônios de ambos os lados da fronteira. De um mundo refém de fantasmas que nunca de fato partiram e permeiam uma alma em si incompleta, que já não acredita no divino ou no secular, que tem apenas na memória o toque das brumas do Verão.

Se existe redenção em Guerra Fria ela se paramenta na assunção da impotência, na vocação genuína de judeu errante, que falhou com si. No fim, as lábias, promessas, bombas nucleares, juras, tiros e carícias ficaram no ar, ecoando pela floresta e a guerra se dissipou na certeza que os abismos não se fecham e os paraísos não voltam. Persistem as velas e o bom cinema.

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