Crítica: Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk)

A rua Beale, diz James Baldwin no inicio de sua obra-prima, é uma rua em Nova Orleans. No entanto, todas as cidades dos Estados Unidos (e do restante do mundo também) possuem a sua rua Beale. É uma rua de famílias negras, onde vidas negras vivem, amam, sofrem e cantam. A rua Beale que agora ganha vida nas telas pelas mãos do oscarizado Barry Jenkins, do belo “Moonlight – Sob a Luz do Luar, fica na Nova Iorque dos anos 70.

Tish (a praticamente estreante e em belíssima performance Kiki Layne) é uma jovem de 19 anos vivendo a história de amor com o vizinho da vida toda, Fonny (Stephan James). No entanto, a vida se revelará uma sucessão de agruras quando o rapaz é injustamente acusado pelo estupro de uma jovem porto-riquenha e vai parar na cadeia. Em meio à luta para libertar o noivo, Tish se descobre grávida. Entre sonhos desfeitos, coragem e muito amor, essa mulher negra precisa descobrir o quão forte é.

O primeiro grande mérito do longa de Jenkins é a delicada e competente forma como o diretor (em todos os seus trabalhos, diga-se) mostra a multitude de nuances da vida dos negros. Tudo em seu filme reafirma a complexidade, particularidade e profusão de camadas que só pessoas negras vivenciam em seu cotidiano. A maior parte da cinematografia que se debruça sobre essas pessoas não dá conta do prisma completo. Jenkis dá. Assim, Se a Rua Beale Falasse é um caleidoscópio de vidas negras com todas as multiplicidades que carregam. Está lá o peso esperado que a questão do racismo impõe (inclusive o racismo institucional que leva Fonny para a cadeia através do depoimento mentiroso de um policial), mas também estão outras categorias, como a vibração única dos amores negros, a dinâmica própria de suas famílias e, até mesmo, o despertar de posturas cruéis através de uma vivência muito pesada do Cristianismo.

Outro grande acerto da produção é a sua sutileza que chega a ser cortante. O roteiro investe em uma narrativa bipartida, mesclando dois tempos: a vida do casal antes da prisão e a luta por justiça quando essa acontece. Com a focalização em Tish, que, inclusive guia o espectador através de um voiceover que, tirando alguns momentos que soam um pouco edulcorados demais, funciona muito bem, a vivência de Fonny atrás das grades só chega a nós nas visitas que a noiva o faz. Dessa forma, a violência dentro da prisão não é mostrada diretamente, mas reverbera forte nos olhares e nos diálogos que os amantes travam. Aliás, a cena mais bonita do filme acontece pela genialidade do uso dessa estrutura. Daniel (linda participação de Brian Tyree Henry) conta ao amigo Fonny como é a vida dentro de uma prisão. É uma cena de olhos e olhares, ocorrida antes do acontecido com o jovem. O espectador, que já sabe o que ocorrerá, se impacta duplamente com o relato.

Se a Rua Beale Falasse é, interessantemente, um filme de muitas cores, real e figurativamente falando. A linda fotografia de James Laxton, repetindo a dobradinha de “Moonlight” com o diretor, enche a tela de uma abundância vibrante de cores, cujo resultado é totalmente lindo. O filme pulsa através de suas cores, que soam mais fortes ao se alternarem com imagens fotográficas em preto-e-branco, que se reduplicam ao ressonarem através de imponente trilha sonora. Visualmente, Jenkins mostra mais uma vez a sua capacidade de dirigir um filme criando um universo arquitetado em audiovisual em sua amplitude máxima.

Mas as cores também são metafóricas aqui. Começando pelo excelente elenco. Kiki Layne enche a tela com uma personagem completa e totalmente impossível de não criar empatia no espectador. Stephan James traz à tona em seu Fonny uma vulnerabilidade de quem se sabe vítima de injustiça e um amor que se revela em cada troca de olhares entre ele e Tish. Colman Domingo, na pele de Joseph Rivers, pai da protagonista, incorpora uma visão muito bonita da fortaleza e do bom humor de certas masculinidades negras, tão importante em tempos tóxicos como os nossos. No entanto, a cereja do bolo responde pelo nome de Regina King. Provável vencedora do Oscar de atriz coadjuvante, King faz da mãe de Tish, Sharon, uma das mais pungentes e competentes atuações da temporada.

Se a Rua Beale falasse (apesar desse título que, como apontou nosso Gustavo David, parece nome de comédia antiga, tipo “Se Meu Fusca Falasse) é mais um acerto de um diretor que em seus filmes (além de “Moonlight, fica a dica: vejam o interessantíssimo “Remédio Para Melancolia”) mostra que, sim, vidas negras importam muito. E que vozes negras devem e precisam ser ouvidas.

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