Crítica: Todos Já Sabem (Everybody Knows)

Asghar Farhadi, o excelente diretor iraniano que assina os ótimos “O Passado” e “O Apartamento“, bem como o brilhante “A Separação”, demonstra claramente sua linha condutora narrativa: todas as suas obras têm, em comum, a análise aprofundada das relações familiares, mais especificamente aquelas que concernem a relação direta entre marido e mulher. Todos os três títulos – dos mais emblemáticos de sua filmografia – supracitados adentram nestas questões e abordam minuciosamente os inúmeros conflitos que podem surgir de relacionamentos. O fato de ser do Irã, país no qual o papel feminino é relegado sempre a planos secundários (ou, até mesmo, abaixo disso), faz de Farhadi um poço de experiência para discorrer sobre a temática. Sua mais nova realização – inteiramente passada no Velho Continente, especificamente na Espanha – não abandona esta marca que define a identidade do autor. Todos Já Sabem segue o mesmo viés e com o mesmo vigor de sempre.

Laura (pela irretocável, em todos os sentidos, Penélope Cruz) viaja com seus dois filhos, uma adolescente e um ainda criança, para a Espanha, de onde é e onde moram seus familiares. Saídos de Buenos Aires, eles chegam para o casamento da irmã de Laura, na antiga propriedade do já velho patriarca. O marido Alejandro (pelo majestoso Ricardo Darín) ficara na Argentina para entrevistas de emprego, já que atravessam uma crise econômica sempre muito íntima aos conterrâneos desse sub-continente. “Sozinha”, portanto, nas paragens onde crescera, Laura relembra e resgata os sentimentos escondidos há décadas, quando teve suas relações mais íntimas com o amigo de todos, Paco (pelo fabuloso Javier Bardem). Mas aquele que seria o palco para festividades e reencontros imaginados e, por muito, esperados se torna um antro de medo, pavor e ansiedade quando a filha adolescente é sequestrada dentro da própria casa da família.

Sentimentos aflorados.

Recados via SMS são recebidos cobrando um pesado valor de resgate pela manutenção da vida da filha e sua devolução em perfeito estado. A família, mais decadente do que próspera, se vê atada sem recursos para garantir a solução ao problema. É quando Paco decide entrar em cena para, em uma ação que perpassa a mera amizade, ajudar com a totalidade da soma, vendendo suas terras (anteriormente compradas desta mesma família por um preço aquém do real). Todas essas ações e contextos começam a suscitar em cada um a desconfiança sobre quem poderia estar por trás do crime cometido: estranhos, Paco, os familiares ou até mesmo os próprios pais. Há indícios que podem levar a qualquer uma dessas interpretações e Farhadi mexe com a perspectiva do espectador ao, sutilmente, colocá-lo dentro desse labirinto de mistérios e dramas pessoais que vão atingindo um por um dos personagens desse enredo enigmático. O flerte com o clichê e o novelesco, dando a impressão de trilhar por um caminho narrativo muito errado, é utilizado habilmente como quebra de expectativa a todo instante, apontando o dedo para quem assiste à obra, antes que este levante seu julgamento antecipado e, por isso, errôneo.

Encorpando ainda mais esse tour introspectivo e extremamente pessoal, Farhadi se logra de um perfect casting, ao selecionar para seu elenco de protagonistas os atores descritos anteriormente: Penélope Cruz, Ricardo Darín e Javier Bardem seriam suficientes para compor qualquer tela cinematográfica com demasiada força, ainda que todo o resto da obra fosse por demais fraca. Mas aqui temos todos os elementos do Cinema cantando em uníssono uma memorável ária escrita por cada um desses grupos: o roteiro, a direção, a atuação, a fotografia estão de uma tal forma entrosados de maneira a nos colocar como parte integrante daquela família. A câmera orgânica e descritiva de Asghar – outro traço de sua identidade – traz tons de realidade a esta obra que grita com sua simplicidade e profundidade diante das relações humanas desnudadas pelas mãos do iraniano.

A decadência do homem.

Mantendo a excelência das produções que contêm o nome de Asghar Farhadi, Todos Já Sabem é mais uma obra que desfia com precisão a carne do ser humano, este invólucro que já não é o bastante para esconder seus desejos mais obscuros, revelando a essência impura dos homens. Uma simples festa em família e uma cerimônia de celebração de união não passam de símbolos fragilizados que se quebram diante da verdadeira natureza das pessoas. “A confecção do homem é fogo” e o fogo tem como ofício consumir o que o toca.

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