Nostalgia: Amarcord
Disse uma vez Louis Armstrong: “O jazz não é um quê. É um como”. Usurpador de boas definições que sou, digo eu: “Amarcord não é um quê. É um como”.
Amarcord é um processo, um caminhar. Amarcord não é uma história, uma trama, um plot. Não tem clímax nem anticlímax. Se tem começo ou fim é porque a gente quer e precisa que os tenha, pelo viés da objetividade. Mas é o subjetivo quem rege as sequências que poderiam muito bem acontecer em looping ou aleatoriamente, de acordo com a sensibilidade de quem a assiste.
Amarcord é um rio que passa. É uma vida que plana. É uma brisa que sopra. Um sonho bom que vara a noite.
São as “manine” que bailam como plumas no ar anunciando a primavera. São flocos de neve que caem suaves e sugerem o ciclo do tempo. É um fluxo de lirismo e poesia. É uma aula de História de uma época que definiu um século. É um passeio delicioso que a gente dá de mãos dadas a pessoas encantadas e – por que não dizer? – fellinianas, já que o próprio criador não só inventou um estilo próprio de fazer cinema, como eternizou tal adjetivo.
Amarcord é Fellini puro, que sintetiza tudo de Fellini, sem que seja o melhor ou o pior de Fellini, se é que haja algo de “pior” em Fellini. Haja vista o quanto de influência este Federico genial injetou nas veias de tantos outros mestres do cinema. Mas por mais que se esforçassem com competência, talento e inspiração, nunca foram tão sutis ao tratar de sexo e flatulência, morte e graça, tortura e óleo de rícino, masturbação e febrão, bagos de elefante e penas de pavão com a mesma delicadeza.
Amarcord é uma mistura lírica e onírica de tudo isso, numa viagem nostálgica de Fellini à sua Itália dos anos 30, através de seus olhos generosos, engraçados, comoventes, libidinosos, políticos e detalhistas. O próprio título da obra remete a um detalhe curioso: Amarcord significa “Eu me lembro”, no dialeto da região da Emiglia-Romana, o que nos induz a um filme autobiográfico, cujo carimbo o próprio Fellini sempre negou. Com lá suas razões. Amarcord não é um filme de vida. Mas de sonhos, visões e leituras do que pode ou não ser ou ter sido real. Tanto faz, não importa.
O filme flana por uma pequena cidade litorânea italiana, como se fosse a sua Rimini da infância e adolescência, e nos coloca no colo alegre, ingênuo, malvado e maldoso de pessoas e fatos que habitam sua memória. Personagens aparecem como em sonhos, tanto pela caracterização física, quanto pelas situações ora absurdas, ora comoventes, ora italianamente exageradas. E assim comem, brigam, amam, zombam de professores, desejam-se, ridicularizam o fascismo, comportam-se travessos como se não houvesse – e não havia mesmo em Fellini – os cordames do politicamente correto, tanto que abundam bundas rebolativas, paixão coletiva pela gostosona da cidade, bullying da molecada com o cego que toca acordeão, exuberância de peitos da gorda da tabacaria, caras, bocas e línguas sexistas da ninfomaníaca caminhando pela praia, pelas esquinas e ruelas. Ah, a aparição do pavão do Conde, o hotel de luxo e seus hóspedes excêntricos, o padre masturbador e curioso das confissões dos meninos, o tio doido que é tirado do hospício para um passeio, mas acaba na copa de uma árvore gritando que queria mulher, a freira anã que surge para desfazer o imbróglio, enfim, um desfile de lembranças apaixonadas, passionais e impiedosas, de um tempo que, se não existiu no calendário, se materializou no rico sótão de Fellini. Ainda bem que ele dividiu suas quinquilharias preciosas com a humanidade.
Se existe uma cena emblemática no meio de tanta alegoria, minha eleita é a procissão de barcos, conduzindo todos os personagens mar adentro até o breu da noite, para ver de perto a passagem de Rex, um transatlântico iluminado, grandioso, que desliza pelas águas escuras diante de todos os habitantes embarcados e embasbacados. As mulheres choram, os homens abanam chapéus, as crianças esfregam os olhos, o padre reza, o prefeito ufanista agradece tal imponência à grande Itália do regime fascista. Só um personagem não vê o deslumbre: o cego do acordeão. Enquanto acelera eufórico seus acordes, gira a cabeça e suplica: “Como é, como é? ”.
Detalhe: a trilha é de Nino Rota. E mais não digo sobre o que é ser embalado por uma trilha de Nino Rota. Multitalentoso, Fellini gostava de desenhar antes de filmar. É uma obra de arte à parte a fidelidade subjetiva dos seus rascunhos ao que de fato é filmado.
Amarcord recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1975. Acho pouco, merecia mais, merece tudo. Não é um filme fácil de ser encontrado, talvez blue ray e YouTube, mas aos sensíveis ao cinema eterno recomendo a procura insistente e a entrega absoluta à sua fantasia atemporal. É como sentir a potência criativa e enfeitiçante do transatlântico Rex, sem precisar ficar gritando “Como é? Como é?”.
Leave a Comment