Análise: Nós (Us) é um tour pela História dos EUA - SPOILERS
Como prometido, cá estou, após resenhar dentro de moldes não-comprometedores, falando sem compromissos com estragar surpresas no filme. É bem provável, leitor, que você tenha chegado a essa análise a partir dessa crítica. Nela explico a necessidade de separação, pois aqui haverá spoilers sem dó nem piedade. Então, caso não tenha ciência ou vontade, sugiro que feche a aba imediatamente. A seguir, minha visão historicizada, tirando eu aqui minha onda de historiadora, do último filme de Jordan Peele.
Descobrimos ao longo do filme que a família Wilson não é a única a passar pelo atentado daquele grupo de sósias; há um grupo igual para cada ser humano do país, disposto a matar seus respectivos, para que, sendo os únicos, possam então formar “um novo mundo”. A matriarca da versão do submundo de Adelaide nos explica que essa enorme organização de sósias foi inventada há muito e que “eles” (o Estado, os poderosos, os que mandam) os colocaram em túneis desativados, forçando uma vida subterrânea, silenciosa e sem livre-arbítrio; vivendo em função, por fim, de seu corpo do mundo de cima. Após vivenciarem o caos durante tanto tempo, unidos à Adelaide versão submundo, aquele grupo sai em busca de um novo lugar.
Uma forte teoria é que o filme reencena a história da colonização americana, na qual puritanos após vivenciarem um bom tempo de perseguição na Europa decidem emigrar para a Nova Inglaterra (EUA). Para isso, dizimam a população nativa e estabelecem princípios próprios ligados principalmente à religião. “Quem são vocês?”, pergunta a família Wilson tão logo se deparam com os indivíduos que, apesar de idênticos, não são eles. E eles respondem, saborosamente, com um firme “somos Americanos”. A nacionalidade mostrando o peso e relevância da construção identitária, um elemento crucial da formação dos EUA.
Outro elemento muito explorado no filme é a religião, já que é notória a influência do puritanismo nos EUA pelas razões umbilicais descritas acima. Signos espalhados ao longo do filme, como o “11:11“, uma citação bíblica de Jeremias, profeta que previa a destruição de Judá. Num discurso final entre as Adelaides, a “do mal” revela que seguiu uma espécie de chamado de Deus, vendo luz e tudo, o que deixa ainda mais claro a conexão com o sagrado. O dualismo do filme não é apenas entre os personagens, que são contrários de jeito, defeitos e qualidades; é também na medida em que coloca duas situações em tela: o Apocalipse, vivenciado nos confins do túneis subterrâneos pelos escarrados da sociedade, e a Gênesis, almejada no mundo dos que “cresceram vendo a luz do sol”.
Outra teoria é que o filme inteiro seja, talvez ao mesmo tempo que a anteriormente descrita, talvez essa segunda sendo a interpretação mais forte, uma metáfora para a ascensão do neofascismo pelo mundo (nos EUA, com Trump se alinhando com essa tendência). A ideia de um espírito fascista submerso, emergindo a partir de uma crise, de uma retirada de privilégio (como historicamente se deu) é bastante visível, em especial se pensado no final do filme, onde descobrimos o plot twist da troca de personagens. Afinal, a personagem líder da “revolução”, a que parece como a salvação daquela gente, é na verdade alguém que tinha um padrão de vida e teve esse padrão de vida interrompido.
Ainda nessa interpretação, é possível associar a série de assassinatos bem-sucedidos como uma espécie de sucumbência àquela realidade, ao espírito do mal; pessoas como os Tylers, por exemplo, caíram facilmente na armadilha e por isso logo morreram. A morte significa o triunfo fascista. Por outro lado, os Wilsons tentam e conseguem formar uma resistência àquela hegemonia. No mundo real, o fascismo põe sob redoma elites e mira em minorias, que tentam resistir à sua dominação.
Ambas as interpretações deságuam com fluidez com a conclusão do filme, que mostra um mundo em que aqueles milhares de novos americanos, vestidos de vermelho, dão as mãos após exorcizarem seu antigo eu. A conexão com o início do filme, em que alegremente a propaganda de “Hands Across America” mostrava como o país é formado por gente de bem cai como uma luva na acida proposta de Peele.
Os coelhos, também presentes no início do filme na cena que eu diria ser a mais primorosa de todo o longa, estão agora soltos pelo submundo, não mais servindo de carne para os subalternos. Se antes apenas vemos todos enjaulados, clonados, seguidos pela trilha musical gótica que gradualmente junta vozes e mais vozes enquanto vemos olhos e mais olhos em tela, agora eles transitam pra lá e pra cá, como no mundo da Alice das Maravilhas, em meio à loucura humana.
Diversos signos magníficos aparecem em tela, como perto da cena final em que a personagem desce aos túneis desativados, como quem desce à uma terra infernal; reparamos também que a posição subalterna evoca a ideia de pessoas carregando países, e a vida em função dele, tais como marionetes. Além disso, a figura inicial indígena no parque de diversões, na atração da casa de espelhos, é um simbolismo interessante a ser explorado, que pode ser relacionado com o fato de terem sido eles os primeiros naquela terra. No filme, como na vida real, são também eles que começaram a morrer, como mostra bem no início um cacique (deduzimos mais a frente, numa cena de praia) sendo morto pelo que viríamos a saber que é seu xará do mal.
“Nós” é um filme que possui mensagens variadas como nenhum outro que já assisti, e parabenizo sem titubear o diretor, também roteirista, por ser capaz de tal façanha. É de fato incrível a ramificação que o filme abre a partir da premissa “nossos piores inimigos somos nós mesmos”; afinal, é esse o motor por trás de tudo de catastrófico que acontece mundo a fora, o que tornou pra mim tais associações históricas instantâneas. A série de coincidências mostradas no filme não se tratam de coincidências. Raízes de um país; a ideia de um Novo Messias; ancestralidades servindo como costas exaustas de uma nação; esses e acredito que outros assuntos cruzam a história do filme, que finca sua bandeira de terror não só psicológico, mas também intelectual, de primeira qualidade.

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