Crítica: Estrada Sem Lei (The Highwaymen)

Estrada Sem Lei termina às 9:15 de uma manhã que anunciava um dia quente na zona rural da Louisiana de 23 de maio de 1934. O mais famoso casal de bandidos da história do crime, Bonnie e Clyde, é alvejado dezenas de vezes por armas tão impiedosas quanto eles mesmo, acabando assim com a série de roubos e homicídios da dupla e jogando à eternidade sua lenda.

A história de Bonnie e Clyde se tornou famosa primeiramente porque a mídia da época precisava dar ao povo americano da Grande Depressão alguma esperança naquele momento de desgraça absoluta. Estes heróis lutavam contra os principais vilões de toda aquela circunstância pós-Crise de 29: os bancos. Foi por causa dos bancos, como costuma ser, que o mundo daquela época foi afundado numa crise sem precedentes e o casal, no imaginário popular, era um vingador homicida de uma classe operária que vagava pelas ruas a procura de emprego enquanto que os bancos retomavam suas casas. Eles só assaltavam bancos, afinal (o que não é verdade). Mas o que o público ignorava (ou escolhia ignorar) era que eles mataram dezenas de pessoas inocentes, incluindo 9 policiais, em geral à sangue frio durante suas estripulias. Pessoas que não precisavam morrer, mas que morriam porque Bonnie e Clyde, no final, já haviam transcendido sua humanidade e se tornado pessoas acostumadas a matar, que sentiam prazer nisso.

Foi por isso que, depois de uma constrangedora fuga da prisão de alguns membros da gangue deles, a então governadora do Texas (e muito me espanta saber que o Texas teve uma governadora mulher na década de 30), Ma Ferguson (a sempre excelente Kathy Bates), muito contrariada, se vê obrigada a se valer dos serviços do lendário Frank Hamer (Kevin Costner, também excelente), o mais famoso e celebrado Texas Ranger de todos os tempos depois do Chuck Norris. Hamer já era famoso à época, ainda que aposentado por uma política de reforma das forças policiais do Texas da própria governadora que agora pedia sua ajuda, justamente porque ele era um tipo de gente que não tinha mais lugar no mundo moderno. E está aqui o maior e mais forte elemento deste filme, a dicotomia entre o velho e o novo, o moderno e o vetusto, o bem e o mal.

Hamer então recruta a ajuda de seu comandado da época dos Texas Rangers, Maney (Woody Harrelson, incapaz de ser ruim), e passa a caçar o casal com seus métodos menos ortodoxos do que os das forças policiais modernas, mais uma vez confrontando o velho com o novo o tempo todo.

O que temos aqui é essencialmente um faroeste que não é no velho oeste e tampouco tem deserto ou bolas de feno soprando por aí. Temos homens sendo homens e, pior, sendo obrigados a ser homens não só para o cumprimento de seu dever, mas também para que permaneçam fiéis a quem são e a tudo no que acreditam. Em uma época em que os homens – enquanto uma coletividade e não alguns especificamente – vêm sendo levados a ter vergonha de sê-los, Estrada Sem Lei vem para nos lembrar que não há vergonha alguma. Que o mundo precisa de homens que entendam quem são e abracem isso sem medo, carregando com gosto a responsabilidade de quem se é e aguentando todas as consequências que isso possa vir a trazer a sua vida sem xingar no Twitter.

Um exemplo perfeito disso é o personagem de Harrelson. Ele é um sujeito que sempre só soube correr atrás de bandido e quando isso lhe foi tirado, ele quebrou no meio. Já velho e sem propósito, a ele resta chorar e beber para tentar não ser devastado pelas coisas horríveis que fez em seu passado, mas sempre em nome da justiça, o que lhe dava não só um senso de propósito, mas também de orgulho. Mais que isso, uma sensação de estar fazendo o certo e de ter o privilégio e o ônus de carregar um fardo quase insuportável. Mesmo assim, quando convidado a participar de uma caçada que terminaria inevitavelmente com a execução de duas pessoas, incluindo-se aí uma mulher, Maney não pestaneja. Ele sabe que tem de ser feito, sabe que aquilo vai atormentá-lo pela vida toda e não tem qualquer dúvida de, assim mesmo, fazer o que precisa ser feito.

Hamer, por outro lado, parece ser um impávido colosso de uma pessoa que sabe que nasceu para ser quem é e não tem a menor vergonha disso. Ele entende que Bonnie e Clyde têm que morrer e está satisfeito em ser a pessoa que vai ter não a fama, honra ou glória de matá-los, mas, sim, o dever de fazê-lo de modo que não seja necessário que outros o façam.

Estrada Sem Lei é um excelente estudo de dois personagens que são coadjuvantes dentro da lenda de Bonnie e Clyde, mas cuja história de vida é ainda mais interessante que a dos bandidos. O longa faz tanta questão de dar protagonismo a eles e a seus conflitos que, em uma decisão acertada e arriscada, praticamente nunca mostra o rosto de Bonnie e Clyde. Para esta história contada pelo roteiro firme de John Fusco e conduzida pela direção de John Lee Hancock, eles são irrelevantes e certamente não há a glamourização de seus odiosos feitos como em outros títulos. Importam os conflitos e a dor de Maney e Hamer, irmãos em armas que enxergam sua profissão de forma diferente, mas que a aceitam como ela é e recebem seu pesadíssimo fardo sem pestanejar.

É de se bater palma ainda para a escalação de Kevin Costner como Frank Hamer. Ela nos brinda com toda uma metalinguagem do cara que já viveu Wyatt Earp (em “Wyatt Earp”) e Elliot Ness (em “Os Intocáveis”) no cinema, outros dois grandes ícones do imaginário policial americano, ao mesmo tempo que também interpretou Robin Hood, personagem muitas vezes ligado à Bonnie e Clyde, que também só roubavam dos ricos.

Apesar de pecar um pouco no ritmo e numa edição que por vezes se mostra desastrada, Estrada Sem Lei é mais um muito bom filme original Netflix, com um elenco de primeira grandeza e calcado nas atuações sempre excelentes de sua dupla de protagonistas. Um Faroeste policial sobre homens sendo homens e o peso insuportável que isso pode trazer.

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