Crítica: Nós (Us)
“Portanto, assim diz o SENHOR: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar, e clamarão a mim; e eu não os ouvirei.” – (Jeremias 11:11)
O brilhante Jordan Peele ataca outra vez. Depois de lançar o fantástico e aclamado “Corra” e produzir o incrível “Infiltrado na Klan“, o diretor abriu caminho e deixou claro que não veio para fazer mais do mesmo no Cinema, em especial no Terror. Tenho absoluta certeza de que quem não gostar minimamente de História não conseguirá apreciar o que tem dedos do Peele, que por acaso está dentro do gênero de terror mas que de longe o transpassa em diversos aspectos – e ainda bem que o faz. Caso não acredite nisso, siga esses passos: sente-se na cadeira do cinema e aguarde por um filme clichê, sim. Afinal, invasão domiciliar; casa de veraneio; trauma de infância; um grupo de estranhos dispostos a tortura. Elementos existentes aos montes por aí. Vai, pode ir se confortando e deslizando na poltrona com um olhar indiferente à tela. Até o momento que seu tapete será puxado.
Considerando a densidade e profundidade deste filme, resolvi fazer diferente – encontro-me num verdadeiro estado de exceção literário. Clicando aqui, leitor, você terá acesso à um artigo que destrincha mais os significados do filme e que invariavelmente está condicionado à spoilers. Sinta-se à vontade para acessá-lo após assistir o filme ou, caso não se importe com spoilers, antes mesmo – dissequei tudo que minha cabeça ficou por horas digerindo. A seguir, minhas impressões mais contidas, a fim de preservar todo o verdadeiro espetáculo que Nós oferece ao indivíduo, e que está diretamente ligado às influências e bagagem que esse indivíduo tem sozinho para interpretá-lo.

Us é um pronome pessoal do caso oblíquo em inglês. Isso quer dizer que ele recebe a ação de um verbo, completando seu sentido. Já “we” é do caso reto, sujeito pois executa a ação – há uma ideia de atividade, em contraste com a passividade do objeto. Guarde essas informações aparentemente preciosistas: a relação de dualidade, opostos e complementos, necessidades e dependências, endossa o filme do início ao fim, e seu título sintaticamente já anuncia isso.
O longa começa apostando no recurso metalinguístico de uma tomada inteira focando no passar de canais de uma televisão nos anos 80, em que uma menina passa pela típica programação americana até se deparar com uma propaganda da campanha beneficente “Hands Across America”. Trata-se de um programa de arrecadação de dinheiro que aconteceu nos Estados Unidos em que milhões, literalmente, de americanos se uniram e deram as mãos (também literalmente, por quinze minutos) pra combater a fome na África. Estados Unidos, os benevolentes, doadores. África, a recebedora.

Aquela menina é a personagem principal, Adelaide, vivida espetacularmente por Lupita Nyong’o, e é uma garota negra de classe média sendo criada por seus pais na Califórnia. O tempo passa e (re)conhecemos Adelaide mais velha, casada e com filhos, revisitando sua cidade natal e casa de infância, usada agora como casa de verão por sua família, composta ainda pelo marido (Winston Duke) e seus filhos Jason (Evan Alex) e Zora (Shahadi Wright Joseph). Suas férias são interrompidas por uma visita inusitada: um grupo de doppelgängers (sósias) da família bate à porta querendo exterminá-los. Provocativo que só, Peele ameaça diversas vezes a usar elementos babacas do terror trashzeira: personagens que vão ao encontro do perigo, que são tomados por coragens (e burrices) inexplicáveis ou que brincam do famoso “gato e rato” com os assassinos.
A exposição de recorte de raça e classe sobre os personagens é imprescindível para embasar a crítica que o filme traz como um todo. A família principal, os Wilson, são negros pertencentes à uma classe média em ascensão – a típica wannabe, que aspira por conquistas materialistas de maneira competitiva com a classe média já estabelecida e, portanto, à sua frente – os Tylers que, tcharan, são brancos. A importância dessa pulga colocada atrás da orelha é justamente quando chega-se ao cerne do filme, que questiona a construção do mito do American Way of Life e em cima de que ele teve que se fundar ao longo dos séculos. Raízes profundas e sombrias. Ancestralidade. Vozes. Silêncios. Religião. Elementos parte do combo no caldeirão da formação dos Estados Unidos da América.

“Conhece-te a ti mesmo”, um aforismo grego clássico, é sussurrado em nosso ouvido. Enquanto indivíduos, questionando as fronteiras da moralidade no campo pessoal. Enquanto cidadãos formadores de uma sociedade, questionando os limites dentro de uma situação de crise – um terreno fértil para emergir monstros, como bem nos mostrou e mostra a História da humanidade. A necessidade humana por um líder ou novo Messias direcionando-nos à nova era, mesmo que desfile entreo caos e guerra, e que tem como ponto de partida a tomada de consciência ou até mesmo a retirada de privilégios de classe.
Quem são esses na tela, que carregam corpos e mentes iguais aos personagens mas existem como uma cópia? Quem são esses, capazes de atrocidades, enquanto eu não, eu nunca? Quem são esses Outros, essas anomalias sociais que aparecem de tempos em tempos, essas exceções brutais? Somos nós. Nós. Potenciais perversos, sim, vindos de nós. Condescendências diante do absurdo, sim, adotadas por nós. Dominações em nome da pátria, sim, feitas por nós. Maquinários mantendo desigualdades, maquiados pelo progresso de uns, glamour de outros, às custas de silêncios, desde que cheirem bem pra nós, sim, esses somos nós. Esta é a América, disse Gambino; e com ela, e por causa dela, esses somos nós.

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