Crítica: Traidores (Traitors)

“É hipocrisia amenizar o sofrimento de um povo às custas do sofrimento de outro povo”.

Muito provavelmente a fala mais interessante de toda a série situa o contexto no qual é passada a narrativa da mais nova produção em seis episódios da Netflix. Iniciando-se próximo à conclusão da II Guerra Mundial, acompanhamos as ações de pessoas ligadas aos governos britânico e americano nos primeiros passos daquele conflito de décadas conhecido como “Guerra Fria”. Traidores falará sobre a delicada iniciativa de espionagem para impedir o avanço, em terras capitalistas, do socialismo soviético, pincelando outros conflitos internacionais que se desenvolvem durante esta trama.

Feef Symonds (em atuação segura de Emma Appleton) é uma mulher empoderada que não quer ser dona de casa, muito menos secretária. Dessa forma, ela aceita uma proposta que mexe com sua necessidade de se mostrar forte em um contexto exclusivamente de homens: a guerra. Symonds, a pedido de agentes americanos preocupados com a nova configuração geopolítica mundial, passa a ser espiã de seu próprio governo, certificando-se de que algumas alas dos estadistas britânicos não flertam com as orientações encaminhadas por Stalin no Leste europeu. Seu envolvimento vai se tornando um tanto mais frágil à medida em que suas relações pessoais passam a experimentar certo sentimentalismo.

A espiã de sua própria casa.

Tem muito tempo que narrativas de espionagem são exploradas, ainda mais neste mesmo contexto histórico específico. De Hitchcock, passando por James Bond, e vindo até o tempo presente, um sem-número de títulos consegue produzir uma realização que, se não é marcante, pelo menos agrada ao público em geral. O tema, por si só, é envolvente. Mas isso não significa seguir uma fórmula ou imaginar que a essência da história é o bastante para carregar o filme. A breve série do streaming nos confirma isto. Por praticamente três episódios – o que resulta em 50% da série – muito pouco acontece, provocando o desinteresse pela trama que não desenvolve na medida em que seria desejável. A própria protagonista não é tão aprofundada de forma a criarmos uma rica relação com ela. Acompanhamos a sua história, porque precisamos seguir com a história e não porque há um desejo de saber o que se sucederá com seus planos e armadilhas.

Para além disso, a riqueza histórica que a série tem em mãos para lapidar sua narrativa é subutilizada. É apenas lá no quarto episódio – quando a fala introdutória deste texto é proferida – que há um uso definitivamente marcante acerca do desenrolar histórico; parece que só ali seu criador percebeu que poderia pegar a História como recurso para tornar sua realização tão mais incrementada, adicionando discussões necessárias, urgentes e pontuais aos subtextos de sua produção. Muito feliz seu roteiro ao colocar em contraponto as necessidades da criação do Estado de Israel, após o maior trauma da Humanidade ter sido testemunhado em pleno território europeu, e as necessidades dos palestinos, que seriam – como bem sabemos – esmagados para que os judeus pudessem ter novamente um território a ser chamado de lar.

Jogo perigoso.

Focando em discussões de gabinete, mostrando o quanto o sofrimento de outrem é mera casualidade quando não se está falando de si próprio, numa ausência completa de um exercício de empatia do homem para com seu igual, a série dá uma acelerada no que deveria ter sido seu objetivo desde o primeiro episódio. Em paralelo, Symonds segue em suas tarefas diárias para tentar descobrir o que pode se esconder debaixo dos narizes britânicos no que diz respeito às “novas” tendências políticas do Velho Mundo. Se, no macrocosmos, nações estão contra nações, no microcosmos as relações pessoais não diferem: “Todo mundo contra todo mundo. Hordas do caos” (Mille Petrozza).

Com muito ao seu dispor para fazer uma obra marcante, Traidores prefere subutilizar o que de tão provocativo e sólido tinha para tanto. Quando decidiu por isso, conseguiu envolver mais seu espectador. O problema é que o acerto pode ter vindo de maneira demorada, trazendo um resultado pouco inspirado ou inspirador. Se você está ainda nos primeiros episódios, talvez valha a pena insistir um pouco. Caso contrário, o ritmo imposto a esta orquestra irá depor contra si própria.

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