Crítica: O Sonho de uma Casa (A Land Imagined)
O grande e badaladíssimo Festival de Locarno, em sua edição de 2018, premiou com o Leopardo de Ouro o filme de Singapura chamado O Sonho de uma Casa (tendo como outro título traduzido, no IMDb, “Uma Terra Imaginada”). É a primeira vez que uma produção deste país consegue ser representado na disputa suíça, tornando-se, obviamente, o primeiro a vencer o prêmio máximo. Essa semana, a Netflix adicionou a obra ao seu catálogo. Com um histórico desses, portanto, as expectativas são as maiores possíveis.
Um tema muito visitado pelo Cinema europeu e, em menor medida, pelo americano, é a migração realizada para dentro dessas potências. Não do ponto de vista de quem não os aceita, mas tendo como perspectiva principal o imigrante, dando voz a um grupo que, cada vez mais, é silenciado pelas autoridades políticas que os “recebem”. O Sonho de uma Casa também é um exemplo desta temática, mas sugerindo uma narrativa nada direta ou óbvia. Acompanhamos, portanto, a história de dois detetives que procuram um trabalhador imigrante chinês desaparecido. Durante suas buscas, somos expostos ao modo de vida do personagem e de outros semelhantes a ele, em condições precárias de moradia e sobrevivência, de uma forma geral. Em paralelo, conhecemos as ações do chinês antes de seu desaparecimento e o que, aparentemente, o levou a isso.

Esta narrativa paralela vai nos colocando em contato com semelhanças entre os protagonistas, o chinês e o policial, apesar das diferenças que os colocam em extremos opostos. Um é o detentor da lei em uma cidade-Estado onde até mesmo vender goma de mascar é proibido (dentre outras proibições bizarras); o outro é um solitário em busca de melhores condições de vida, em uma cidade-Estado que guarda a maior proporção de milionários do mundo. Essas relações vão se fazendo cada vez mais aparentes e presentes no modo pelo qual Siew Hua Yeo monta sua história. Em uma proposta pouco clara, ele vai mesclando os personagens através de características que compõem a persona de cada qual, chegando a uni-los em uma idéia de sonho durante a busca que um realiza pelo outro. O policial determinado em encontrar o imigrante, que por sua vez parece tentar se encontrar ajudando outros iguais e sobrevivendo a cada dia nesse lugar de muitas nuances. “Ele me procura, mas não se preocupa comigo”, define o chinês em determinada altura, julgando o trabalho daquele que faz o que tem que fazer, sem exaltar grandes considerações.
A jornada do policial se aprofunda ao conhecer a forma de vida daqueles que subexistem nas relações diárias desse Estado que parece um monstro de Frankenstein em sua composição. Como pequenas abelhas operárias a realizarem seu ofício, produzindo para a máquina maior que os reduz a engrenagens menores, os trabalhadores (em boa parte constituídos por imigrantes à procura de uma vida melhor) vão sendo revelados à nós e ao policial, que parece se surpreender com o que vê. A magnitude das construções nababescas de Singapura são constituídas pelo esforço desses que não tem nome, que não tem face, que não tem vontades. O mel adocicado à mesa na sobremesa de cada dia esmaga a ação cotidiana das abelhas em sua tarefa infinita. O dinheiro milionário que emerge a cada esquina construída nesse Estado esmaga o ser humano que se esconde nos tijolos e concretos das edificações. O Sonho de uma Casa, sobretudo, é sobre isso.

De maneira bem alegórica, focando muito mais nesses detalhes que se revelam em meio a uma trama que parece respeitar outro gênero, o filme vencedor de Locarno nos brinda com uma narrativa mais densa, mais introspectiva e tão mais sensível do que outros títulos que, da mesma forma, protestam e acusam as mesmas questões. Desafiador e delicado, O Sonho de uma Casa aproxima e humaniza aqueles que há muito foram separados e desumanizados pelas relações e dinâmicas inerentes a uma sociedade que caminha, feroz e cegamente, em direção ao caos.
Leave a Comment