Crítica: Persona

Annyeonghaseyo! Em algum momento no inicio do ano passado minha esposa e eu descobrimos na Netflix um reality show Coreano chamado Hyori’s Bed and Breakfast (Hyorine Minbak no original). Nele, a cantora Lee Hyori (celebridade absoluta na Coréia) e seu marido, o guitarrista e DJ Lee Sang Soon (com seus vários cachorros e gatinhos fofos), recebem fãs em sua casa na paradisíaca ilha Jeju, numa espécie de oposto absoluto do Big Brother. A série, exibida em duas temporadas e gravada ao longo de um mês de cada vez – um no verão e outro no inverno – mostra essas celebridades como anfitriões de uma pousada, recebendo pessoas comuns dentro de sua casa e compartilhando um pouco de sua vida. Foi, acredite ou não, a melhor coisa que eu assisti em 2018.

Nela vemos pessoas sendo boas e educadas umas com as outras em todos os momentos e situações. As celebridades são também pessoas comuns, interessadas nas vidas de tais fãs, preocupadas com seu bem estar e mostrando-se sensíveis como se esperaria de artistas – aquele tipo de pessoa que vive de coração e não de fama. Durante uns poucos meses, a série me deu a sensação de que em algum lugar, ainda que na Coréia e ainda que num reality show, existem pessoas com quem eu gostaria de conversar e teve um efeito terapêutico nas minhas noites (se você precisa desacelerar o stress do seu dia, eu recomendo de verdade!).

Na primeira temporada, além de conhecerem Hyori e Sang Soon, os fãs tinham uma surpresa a mais pois a faxineira da casa era a cantora Lee Ji-Eun conhecida pelo nome IU. Uma das maiores celebridades da Coréia, IU ficou famosa por manter uma aparência de boa moça (num estilo meio Sandy de ser) e por conseguir uma carreira monstruosa apesar de nunca ter sido parte de uma Idol Band (boy ou girl bands de música pop coreana – K-Pop – no estilo New Kids on the Block, Backstreet Boys, Menudo, Spice Girls, etc.) o formato preferido dentre o público consumidor de música Coreana. E, ao estilo dos astros pop de seu país, IU canta, dança, participa de programas de variedades, atua em novelas, filmes, comerciais e tudo o que mais lhe apareça pela frente.

IU’s Upcoming Film “Persona” To Premiere On Netflix In April

A minissérie de 4 episódios Persona traz IU como atriz principal de todos eles, cada um filmado como um curta-metragem e dirigido por um diretor coreano diferente, alguns renomados, alguns aparentemente iniciantes. A ideia parece ter a cantora como musa e contar uma história que seja inspirada por ela e não apenas escrita para ela. Os episódios parecem explorar traços de personalidade ou “personas” que a cantora assumiu em sua vida pública. Isso porque, ao longo dos anos e muito espertamente, os produtores por trás da marca IU criaram para ela várias facetas que foram exploradas durante um disco, ou durante uma turnê, e estas facetas – a menina meio boba do interior, a pós-adolescente mimada, a colecionadora de corações e a jovem adulta melancólica que se decepciona com a fama – aparecem durante os episódios.

Iu in Persona (2019)

No primeiro – Love Set – dirigido pela atriz e diretora Lee Kyoung-mi, IU é… IU, uma garotinha mimada que faz uma aposta com a Bae Doona, namorada de seu pai e interpretada por… Bae Doona, a Sun Bak da série Sense 8. Se IU perder um jogo de tênis ela deixa de falar com seu pai. Se vencer, Doona termina com ele. O episódio parece uma versão ultra light de Azul é a Cor Mais Quente, em que o diretor ficou taradão por Adèle Exarchopoulos (de tal maneira que o nome da personagem principal também é Adèle) e passou boa parte do filme mostrando a moça mexendo no cabelo e comendo de boca aberta (além, é claro, das tórridas cenas de sexo). Aqui não há cena de sexo alguma – estamos falando do público Coreano, bastante mais careta que o francês – mas boa parte do curta mostra nucas, bocas, olhares, suor escorrendo, pele, num exercício fotográfico que busca mostrar ambas as personagens como sensuais, disputando a atenção do público, do pai e uma da outra.

No segundo – Collector – dirigido por Yim Pil-Sung, IU (Ji-Eun) é Eun, uma moça em um longo diálogo com seu namorado mais velho – o típico tiozão Sukita – em que o mané tenta descobrir as razões dela ter sumido por dez dias sem dar satisfações. A personagem da cantora é construída como uma mulher distante e indiferente que parece colecionar parceiros e depois descartá-los por puro passatempo. O filme tem um certo quê surreal, lembrando um episódio de Twilight Zone com pitadas de humor negro.

No terceiro – Kiss Burn – dirigido por Jeon Go-Woon IU é Han-na, uma garota preocupada com Hye Bok, uma amiga de escola que é punida pelo pai por aparecer em casa cheia de chupões no pescoço. Han-na cisma que Hye Bok tem que se vingar do pai e passa o episódio tramando uma maneira de sacanear o coroa bebum. Ambientado em algum cafundó do judas no interior da Coréia, o episódio é uma comédia pastelão jeca-tatu, em que IU interpreta uma garota meio sem noção que sequer sabe beijar ou de onde vêm chupões (ou Kiss Burn – “queimadura de beijo” – em coreano) que passa o episódio torrando o saco da amiga pipa avoada.

No quarto e melhor episódio – Walking at Night – dirigido por Kim Jong-kwan, IU é Ji-eun (de novo, seu nome real) em uma história que trata de momentos que desaparecerão para sempre. Filmado em preto e branco, o filme mostra um longo diálogo entre um casal de namorados que conversa sobre assuntos pesados e melancólicos. Ji-eun diz ao rapaz que ele a conhece muito bem e que sempre fez muito bem a ela, e que muitas outras pessoas também a conhecem mas, por isso e pela maneira como a trataram, fizeram com que ela se sentisse sempre solitária. O texto, que parece se referir à vida da própria cantora, surge em um momento em que suas músicas falam da maneira rude e invasiva como as pessoas lidam com celebridades nas mídias sociais. O filme é sensível e tem dentre todos o melhor texto, trazendo aquele clima rasga coração típico do cinema asiático.

A série é divertida e, de novo, a Netflix acerta nos episódios curtos, perfeitos pare serem assistidos de maneira despretensiosa. Os dois primeiros filmes parecem uma tentativa de atingir a um público internacional (parte do texto é em inglês e há personagens estrangeiros) e os outros dois parecem focar mais na cultura e no público local. Todos carregam aquele selo de qualidade técnica que se espera do espetacular cinema coreano: fotografia, direção de arte, trilha sonora, tudo ao nível (ou melhor) do que há de mais bem feito na Netflix. Faltou, com exceção do último episódio, talvez, um pouco daquele clima autoral, experimental, ou simplesmente inesperado que aparece com frequência na cinematografia daquele país.

No caso de uma segunda temporada (que deve acontecer), quem será a musa ou muso?

Como uma curiosidade, a expectativa pelo lançamento da série era tão grande que em virtude de uma tragédia ambiental – um incêndio em uma área rural no leste da Coréia – seu lançamento foi adiado, temendo uma resposta baixa do público preocupado com as notícias e telejornais locais.

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