Crítica: Um Homem de Sorte (Lykke-Per)

O que um jovem cristão, filho de um reverendo, pobre, numa Copenhague do final do século XIX pode esperar da vida? Segundo o longa Um Homem de Sorte, muita coisa. Chegando à NETFLIX nesse fim de semana através da distribuição oficial no Brasil após o filme rodar diversos festivais pelo mundo em 2018, temos aqui uma verdadeira novela mexicana, digo, dinamarquesa.

Não me entenda mal quando me refiro à obra como novela. Longe das conotações negativas que o termo pode suscitar – como diálogos rasos, motivações fracas ou inexistentes e valor de produção baixo -, somos brindados com uma história muito bem orquestrada e com atuações firmemente dirigidas pelo lendário Bille August. Contudo, fazendo jus ao termo novela, Um Homem de Sorte é uma obra MUITO longa, com diversos altos e baixos e que ao final não acaba por sustentar tudo que foi apresentado.

Acompanhamos Lykke-Per (Esben Smed) – o nosso jovem cristão – recebendo uma carta para cursar engenharia em Copenhague, que o faz partir para a cidade grande com uma mão na frente e outra atrás, já que seu pai desaprova o caminho sórdido da ciência e o ambiente promíscuo que sua prole habitará. Uma vez lá, Per passa a sobreviver das sobras do restaurantes onde trabalha lavando pratos enquanto cursa engenharia, estragando as aulas com ideias revolucionárias para sua época (diria até hoje em dia), como a produção de energia renovável (eólica e maremotriz). É essa ambição de colocar seus projetos em prática que vai mover todas as suas atitudes, algumas bem questionáveis, e envolverá uma série de personagens que serão fundamentais para a realização dos seus sonhos, especialmente a família Salomon.

Após conhecer um dos herdeiros, aquele camarada bem boêmio, ele tem uma oportunidade de explicar seus projetos para o gerenciador da fortuna da família, que passa a apostar em seu sonho enquanto Per corteja uma de suas filhas. A partir desse ponto, começa uma montanha-russa de altos e baixos de escolhas mal-feitas, atitudes incompreensíveis e muita disputa de ego em diversas reviravoltas que irão consumir sua empatia por Per assim como a sua paciência com a duração do longa, intermináveis 2h42min.

Tecnicamente eu não tenho o que reclamar da película. Sua fotografia é belíssima, seus atores entregam boas performances, a edição, mesmo não sendo extraordinária, é agradável e a direção consegue segurar tudo com uma mão firme. Porém, temos uma série de problemas envolvendo o roteiro que vão desde o abandono de elementos importantes introduzidos até a representação de relações sociais pouco críveis. A começar pelo total abandono de personagens que catapultam Per, como a garçonete que o acolhe e ajuda em momentos de dificuldade ou sua própria faculdade. Tudo bem que Per é retratado como um gênio, mas há em todo o longa apenas 1 cena dele em aula, que serviu somente para corroborar sua ida à capital. Considerando que os cortes de tempo são relativamente curtos, não pareceu que o conhecimento prévio e o adquirido por Per foi suficiente para elaboração de todos os seus projetos revolucionários.

Outra questão incômoda foi a sua relação com a família Salomon. Vindo de um lar pobre e cristão, Per encontra muita receptividade em uma família de judeus ricos, audaciosos ao investir em um projeto de um estudante e que não se incomodam quando nosso protagonista começa a investir pesadamente nas herdeiras. Embora ache lindo eles não ligarem (muito) para o credo e classe social, considerando a época, fica um tanto difícil de engolir.

Para dificultar ainda mais a imersão, a obra tenta se apoiar na questão religiosa para explicar muito dos problemas de personalidade que Per apresenta. Aparentemente, sua criação numa família pobre e cristã, misturada com sua ambição profissional e desejo carnal, são as causas para um resultado catastrófico. Contudo, sua mente desequilibrada, ambiciosa e que carrega marcas dessa criação (que em nenhum momento foi mostrada) que reprimia seus anseios praticamente não encontra respaldo em qualquer conflito religioso entre o cristianismo e o judaísmo, com raríssimas cenas que justificassem seus atos irracionais, deixando totalmente ao encargo do espectador fazer essa conexão.

Mesmo com uma barriga gigantesca, que consome quase 1h do filme em uma viagem para a Áustria, que você pode muito bem pular sem perder nada, você ainda encontra algum valor para o tempo investido no seu entretenimento. Um Homem de Sorte é um drama sobre um homem que deixa sua maior virtude se tornar sua desgraça e que nos mostra que Lykke-Per faz jus ao título.

Nenhum comentário

Tecnologia do Blogger.