Garimpo Netflix #14: Coréia do Sul

O Garimpo é um quadro do MetaFictions no qual indicamos toda semana bons títulos disponíveis nas maiores plataformas de streaming. Clique aqui para conferir os anteriores.


Seguindo a onda dos Garimpos por nacionalidade das produções, hoje aterrissamos na Coréia do Sul, um dos países cujas obras mais me dão gosto de ver. A capacidade de ser, a um só tempo, visceral, violento, romântico, apaixonado, crítico e inovador é uma das características que mais me agrada no cinema coreano. Para além disso, a forma como a narrativa é desenvolvida e a perspectiva com a qual tratam seus personagens (nunca fazendo juízos de valor vazios ou rasos) tornam o conto um oceano de detalhes e nuances impedindo o velho padrão ocidental maniqueísta. Nada, em um filme de lá, é marcado pelo preto e branco, pelo certo e errado, pelo bom e ruim. Os tons de cinza sobressaem, manchando a pureza de cada um de seus protagonistas, revelando a complexidade da natureza humana.

A técnica presente nesses filmes também é algo a se considerar. Fotografias impecáveis, roteiros profundos e direções muito bem seguras conseguem dar a forma perfeita para estas peças que costumam surpreender seus espectadores. A organização tão falada desta cultura transborda nos títulos que acompanhamos, sendo muito perceptível a atenção dada a cada parte mínima das produções. John Houston, certa vez, falou “filme cada cena como se fosse a mais importante e todo o resto se ajeitará”. Parece-me que a fala do velho John encontra solo fértil do outro lado do mundo, tamanho o cuidado com o qual essas realizações são esculpidas.

Nos três títulos selecionados hoje, todos esses elementos saltarão à sua tela, fazendo-o submergir em um universo preciso de cores, sentimentos, textos e sub-textos. Cada traço do Cinema coreano fala alto e com vigor, seja no silêncio de alguns de seus planos, seja na verborragia gritante de alguns de seus personagens. Não raro, é neste país que vislumbro o elogio do Cinema.


– A Criada (Ah-ga-ssi), de 2016, dirigido por Chan-wook Park

A primeira indicação, propositalmente, é uma obra-prima. A assinatura já dispensa qualquer dúvida. Sempre que vir nos créditos de uma produção o nome Chan-Wook Park saiba que estará de frente para a perfeição. Realizador do – na minha opinião – melhor filme do século XXI (ainda que este século não tenha concluído seu primeiro quarto), Oldboy (e de tantos outros filmes poderosos), Park faz mais um título impactante e de beleza ímpar: A Criada.

Inspirada pelo livro “Fingersmith” de Sarah Waters, a história se passa na Coréia do Sul da década de 1930, quando da ocupação japonesa no local. Sookee (Kim Tae-ri), uma jovem mulher, recebe a incumbência de trabalhar para uma herdeira japonesa chamada Hideko (Kim Min-Hee), que vive com seu tio opressor, mantendo uma vida um tanto quanto isolada dos demais. Sookee, no entanto, planeja se aproximar de Hideko para, junto a um homem, roubar sua fortuna e abandoná-la em um hospício. Porém, seus planos começam a se alterar quando uma identificação com Hideko vai aflorando.

Marcada pela perfeição estética da dupla Park e Chung-hoon Chung (que assina a cinematografia das principais obras do diretor) e recheada por uma trama muito mais rocambolesca do que sugere a sinopse, A Criada desafia seu espectador com plot-twists dignos de Chan-Wook Park, envolvendo cada um de nós em uma teia de ressentimentos, vingança, erotismo e empoderamento.

– The Witness (Mok-gyeok-ja), de 2018, dirigido por Kyu-Jang Cho

Sang-hoon (Sung-min Lee), um homem comum de classe média, trabalhador e provedor de sua família composta pela mulher e filha pequena, está satisfeito com a nova compra de um imóvel em um bom bairro da cidade. Apesar de ter que pagar a hipoteca por anos, ele se sente confortável com a nova conquista da família. No entanto, seu cotidiano de trabalho, casa e família é abalado brutalmente quando, da sacada de seu apartamento, testemunha um violento crime na madrugada. A golpes de martelo, uma jovem não resiste ao ataque de seu algoz. No dia seguinte, a equipe de investigadores tenta encontrar vestígios que indiquem o autor, mas os condôminos pressionam os vizinhos pelo silêncio, para evitar a queda do valor imobiliário da região.

Sang-hoon vive um embate interno sobre falar para a polícia o que contemplou ou ficar quieto, enquanto o criminoso – sabedor de sua identidade – ameaça a vida de seus familiares, caso o homem ordinário resolva considerar o pedido dos investigadores. O silêncio sufocante vai levando Sang-hoon ao limite emocional e psicológico, à medida em que faz de tudo para manter a segurança dos seus.

Como em uma rotina selvagem, na qual caçadores e presas correm em busca de objetivos opostos, Sang-hoon e o criminoso vão, aos poucos, colocando para fora os instintos mais animais do homem.

Okja (Okja), de 2017, dirigido por Joon-ho Bong

O grande diretor Joon-ho Bong, mais uma vez, fala sobre as relações pessoais através de um filme forte que consegue pincelar várias áreas da vida humana, entrando fundo no afeto de uma criança com seu animal de estimação. Dessa forma, narra-nos a história de uma gigantesca empresa que, objetivando erradicar a fome, cria os chamados “super porcos”, raça produzida em laboratório; tendo enviado ao redor do mundo um número específico desses animais, com a idéia de torná-los íntimos às culturas locais. Após 10 anos, um concurso promovido por estes empresários irá selecionar o melhor “super porco” de todos. Com medo de perder “seu” animal de estimação, a jovem Mija fará de tudo para lutar pela vida de Okja – o animal criado por seu avô, e que se tornara um de seus melhores amigos.

O diretor, sensível como de costume, nesse mundo fictício – mas que dialoga cruelmente com a nossa realidade diária – ensaia pesadas críticas ao modo de vida humano, em geral. Mesmo partindo da relação entre um criança e um animal, a humanização do “super porco” Okja é tão intensa, que, em determinado momento, não conseguimos mais ver o bichão desengonçado que pode servir de comida a dezenas. Começamos a vê-lo como parte integrante das relações afetuosas daquela família oriental que cuidadosamente criara o animal, não vislumbrando-o como um banquete futuro, mas como um outro membro de seu convívio diário. Através de suas alegorias pontuais, Okja vai estampando muito claramente as odiosas ações humanas que, do contrário, desumanizam o próprio humano, fazendo de cada um de nós meras peças a realizar o contínuo e eterno movimento da engrenagem maior.

Se, em nosso dias, o homem desumaniza o seu igual, em Okja Joon-ho Bong humaniza todo e qualquer animal.

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