Crítica: A Gente Se Vê Ontem (See You Yesterday)
Sabe quando algum produtor de Hollywood, na esteira dos movimentos por maior representatividade de minorias, simplesmente pega um filme estrelado por homens brancos e faz com que ele seja estrelado por mulheres, homens negros, mulheres negras, homossexuais ou qualquer outro grupo historicamente menos representado nas telas? Pois então, à primeira vista é este o caso deste A Gente Se Vê Ontem. “É só um sci-fi do gueto” dirão os mais esquentadinhos com esta onda de representatividade que vem tomando conta da produção cultural americana e que realmente vem apresentando coisas forçadas e que se assemelham um pouco a esmolas. E, quer saber, esses esquentandinhos não deixariam de ter razão. Mas, puta que o pariu, que maravilha que isto aqui é, sim, um sci-fi do gueto e, digo mais, que frescor que me veio quando percebi que, ao contrário da versão feminina dos caça-fantasmas, por exemplo, esta não é puramente a versão negra de filmes de viagem no tempo, mas, sim, uma visão lúdica e original sobre todo um aspecto social que é hoje talvez o maior problema neste terreno dos Estados Unidos que se vale da viagem no tempo como mera alegoria.
Em A Gente Se Vê Ontem, o diretor Stefon Bristol, fazendo sua estreia em longa metragens com o apadrinhamento de nada menos do que Spike Lee, nos conduz pelas aventuras de CJ (Eden Duncan-Smith) e Sebastian (Dante Crichlow), dois geninhos da escola de ciências do Bronx. Como é comum naquela vizinhança, ambos são negros, filhos de uma família não exatamente de comercial de margarina e veem na ciência e na educação a sua maneira de escapar daquela dura realidade. É então que, com a desculpa inicial de vencerem a exposição de ciências para garantir sua entrada na faculdade, entra em cena uma história de viagem no tempo que presta homenagem claríssima a “De Volta para o Futuro”, inclusive usando a sua lógica de viagem no tempo, bem como metendo o Michael J. Fox no começo exclamando uma das famosas interjeições do Dr. Brown.
Pegando emprestado também aquele mesmo clima leve de “De Volta para o Futuro” em seu início, nós somos conduzidos por uma história divertida e engraçada, com a apresentação de personagens coadjuvantes que dão maior riqueza e cor àquela vizinhança de negros e imigrantes afro-caribenhos. Isso até que uma tragédia que prefiro não revelar ocorre, jogando na nossa cara que o conflito aqui não será um mero “tenho que fazer com que minha mãe se apaixone por meu pai e pare de querer me dar senão eu deixo de existir” de Marty McFly, mas, sim, as circunstâncias reais pelas quais passam estes grupos marginalizados.
É então muito mais do que com um mero tempero de negritude que A Gente Se Vê Ontem passa de um filme que prometia ser uma espécie de “Pequenos Espiões” versão viagem no tempo e se torna um drama que, em contraponto ao que ameaçava ser, se mostra pesadíssimo, lidando com temas densos como o luto, a morte e a nossa desesperada busca por controle a todo momento.
O diretor Bristol, apoiado num elenco de jovens e desconhecidos atores realmente fantástico, se vale, então, da viagem no tempo como uma alegoria da luta do povo preto por igualdade e justiça e a frustração diante da impotência de causar alguma mudança realmente significativa no curto-prazo.
Isto pode se tornar um pouco confuso para quem vai assistir ao filme já com uma ideia de que estará vendo somente uma “aventura radical de dois adolescentes aprontando todas no Bronx”. E o curioso é que ele é isso sim, mas é muito mais. É crítica social, é reflexão sobre a condição humana, é uma história de despertar à maturidade e é divertimento nas mãos principalmente da entrosadíssima dupla de protagonistas.
O final, mais ou menos como ocorreu num grande hit da Netflix do passado “Vende-se Esta Casa“, vai incomodar muita gente, apesar de funcionar perfeitamente dentro da dinâmica narrativa que o filme nos apresenta. Mas, escusadas algumas licenças que o roteiro tira para forçar determinadas situações relacionadas à lógica da viagem no tempo (e eu já disse aqui várias vezes o quanto eu odeio esse artifício), é uma obra que cumpre com muito louvor aquilo a que se propõe e ainda apresenta ao mundo dois atores dos quais acredito que veremos muita coisa no futuro.
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