Crítica: Jo Pil-Ho: O Despertar da Ira (Ak-jil-gyeong-chal)

Em 1992, o fantástico e subestimado Harvey Keitel estrelava “Vício Frenético”, um filme alucinado dirigido por Abel Ferrara no qual Keitel interpretava um policial corrupto, viciado, cachaceiro, putanheiro que, ao investigar o estupro e assassinato de uma freira, segue em um arco insano de redenção. Em 2009, o lendário cineasta alemão Werner Herzog se juntou com um totalmente despirocado Nicolas Cage para fazer uma espécie de nova versão deste mesmo “Vício Frenético”, mas desta vez se valendo de um policial tão podre quanto o de Keitel para fazer uma puta duma crítica ao establishment americano numa Nova Orleans recém-devastada pelo furacão Katrina, com a jornada de Cage também à redenção.

Estamos agora em 2019 e Jo Pil-Ho: O Despertar da Ira é basicamente a versão coreana disso, o que quer dizer que o nível de putrefação das coisas que acontecem aqui chega a ser infantil em comparação ao americano. A filmografia coreana, apesar de apresentar algumas das obras mais violentamente perturbadoras de que sem notícia nos últimos anos, ainda é um tanto ingênua no que se refere às mazelas sociais-urbanas e ao crime em si. Os filmes policiais de lá quase sempre envolvem quadrilhas de assaltantes ou contrabandistas de alguma coisa, sendo raro qualquer menção a uso de drogas ou crimes mais pesados. Um bom exemplo disso é o recente Drug King, um filme que fala sobre um grande chefão do narcotráfico mas que poderia ser assistido por um moleque de 10 anos na boa.

Esta ingenuidade fere bastante o evidente potencial de Jo Pil-Ho. O sujeito que dá nome ao filme é um detetive da divisão de homicídios em alguma cidade da Coreia. Mas ele está muito mais interessado em dar um golpe ou outro aqui e ali do que em fazer seu trabalho de policial. Com a corregedoria sempre em seu encalço, ele resolve dar um golpe bem ousado, mas que parece seguro, para faturar alto. Tudo dá errado, seu comparsa morre e agora Jo Pil-Ho está envolvido numa teia de conspiração política e corporativa que envolve gente do mais alto escalão do governo e da maior empresa da Coreia, uma cujo nome termina com “sung” e que obviamente faz referência a esta que talvez tenha fabricado esse celular na tua mão aí.

O detetive vai então se envolver em uma trama levemente folhetinesca que promete muita ação e violência, mas que desaponta nesse quesito, entregando tão somente uma obra tecnicamente correta, com boas atuações e uma história clássica do malandro que fez muita merda na vida e agora busca redenção, tal qual ocorre nos dois filmes a que fiz referência no início. O problema aqui é que o que torna os dois filmes americanos referenciados no início fantásticos é justamente o fato de que um sujeito de moral questionabilíssima, que chafurda no que há de mais abjeto na condição, consiga se erguer para fora deste lago de merda e buscar uma redenção em algo que vai muito além de si mesmo. Aqui isto não ocorre com o mesmo impacto, muito porque o detetive Jo é mais uma espécie de Agostinho Carrara coreano do que um filho da puta de marca maior como suas contrapartes americanas. A redenção que ele busca é real, mas ele nunca fez nada assim tão errado que justifique a intensidade com a qual se agarra naquilo.

Curiosamente, mesmo que este arco não seja tão impactante quanto poderia ser e não nos cause a empatia que seria necessária para que a história funcionasse 100%, é justamente nele e nas decisões absolutamente despropositadas tomadas pelo protagonista, mas que fazem sentido dentro da mente daquele sujeito, que a obra encontra seu brilho, com um determinado acontecimento no final que comprova o brilhantismo do cinema sul coreano mesmo em obras menos inspiradas.

Jo Pil-Ho: O Despertar da Ira se trata de um bom filme policial, que talvez desaponte aqueles que buscam porradaria, tiroteio e violência, mas que, embora peque pela inocência que é inerente ao cinema coreano e que prejudica sobremaneira esta obra, entrega boas duas horas de desenvolvimento de personagem e uma trama simples, porém bem trabalhada.

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