Crítica: Joy
O tráfico sexual é um dos resquícios do sistema colonial que dominou continentes fora da Europa durante séculos. Quanto mais colonizado um país foi, maiores são as continuidades do colonialismo; não à toa, basta uma rápida pesquisa para concluir que grande parte dos países que apresentam altas taxas de tráfico humano e especificamente sexual são ex-colônias. Infelizmente, tais pesquisas não trazem números tão próximos aos reais pela completa impunidade nos locais de origem do tráfico – ainda assim, a coleta de dados insuficiente já é angustiante por si só.
Pode parecer ainda mais inacreditável que haja, ainda, casos em que esse tráfico sexual é feito com consentimento da pessoa que migrará; afinal, quem em sã consciência estaria disposto a passar pelos horrores da prostituição em país estrangeiro e deixar sua família e terra de origem? O filme Joy retrata a escolha de Joy, comum a tantas outras mulheres, que deixou a Nigéria ciente de seu destino na Áustria, na esperança de melhorar a própria vida e de sua família.

Para compreender a história de Joy é necessário adotar uma perspectiva antes de tudo sensível e, depois, historicamente sensata. Sensível ao entender que na esmagadora maioria dos casos de prostituição não cola a “teoria bruna-surfistinha” que defende que a mulher faz aquilo por que quer ou ainda por que gosta; tenhamos noção ao entender que é um trabalho que tem como condição a violência, física ou psicológica, consciente ou inconsciente, infligida por você ou por outro.
A sensatez histórica seria por analisar os porquês da Nigéria ter naturalizado o tráfico sexual o suficiente a ponto de muitas vezes acontecer de forma voluntária pela pessoa traficada: um país que conquistou independência há menos de 60 anos, passou por uma guerra civil, ditadura e tem conflitos étnicos internos (frutos da política de “separar para conquistar” britânica) até os dias atuais não é bem um exemplo de prosperidade e esperança pra sua população. Na cabeça de Joy, como de outras mulheres nessa situação, vender o corpo na Áustria pode não ser tão pior do que viver em zonas de caos social, corrupção, desemprego e pobreza extrema.

Num esquema análogo à escravidão, é criada uma dívida imensa que deve ser paga à cafetina para conquistar a liberdade (nesse caso um passaporte austríaco). Qualquer denúncia pode resultar na deportação e maldição religiosa, crença fruto de um ritual feito antes do embarque para longe. Qualquer resistência ao acordo resulta em punição física da parte da Madame, uma figura que existe como forma de apelo à figura materna e símbolo de “inspiração”, já que carrega o histórico de ter sido prostituta, quitado a dívida e ascendido hierarquicamente.
Ela é uma senhora de terras negra, relacionando com a escravidão clássica – e é em vão buscar qualquer empatia racial entre todos ali, pois há muito o capitalismo amordaça a consciência racial em nome do lucro. A prova disso é a inserção de Precious, uma menina recém chegada da Nigéria que fica “sob os cuidados” de Joy, para que ela não saia da linha, cumpra com seus pagamentos e não fuja. Caso isso aconteça, recai sobre os ombros de Joy a dívida da novata; uma perversa armação que sabota a confiança e rivaliza aquelas mulheres. Dividir pra conquistar.

Joy é um filme denso e árduo de se assistir, já que toca num assunto sensível e tem cenas fortes – mas é extremamente necessário para que não fechemos os olhos pro que acontece pelo mundo. Refletir e estudar os porquês e tomar um choque de realidade faz nossa humanidade, tão socada e em estado cada vez maior de hibernação, passar por manutenção.
O exercício de alteridade é fundamental para nossa condição humana e o filme sucede, em cima de escombros que fazem doer o peito, ao contar a história com profundidade e vicissitudes da vida daquelas mulheres, fazendo com que consigamos nos aproximar tanto do outro a ponto de perguntar “e se fosse eu ali?”. E se?
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