Crítica: Tuca & Bertie
“É exatamente esta a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de forma múltipla: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana, mas que se a pessoa não se intimida mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos, e ao fim emergirá vitoriosa.” A Psicanálise dos Contos de Fadas, Bruno Bettelheim.
A melhor coisa a respeito de animações talvez seja a liberdade criativa de que elas dispõem, permitindo aos seus criadores a possibilidade de apresentar universos onde absolutamente qualquer coisa seja possível, geralmente refletindo as aventuras surreais que uma onda de àcido é capaz de oferecer. Mas, por mais louca que uma animação possa parecer, o segredo do seu sucesso geralmente está associado à mescla de elementos fantásticos com dilemas e questões próprios da realidade humana, apresentando, seja por metáforas ou situações exageradas, reflexões sobre a complexidade das experiências humanas.
Diante disso, na mais nova animação lançada pela Netflix – Tuca & Bertie, somos apresentados a uma fórmula extremamente interessante, que aliás segue a linha produtiva de Lisa Hanawalt, uma das produtoras da bem-sucedida série animada Bojack Horseman: apresentar, através de um enredo inusitado e cheio de humor ácido, as mais dramáticas e pertinentes situações humanas, envolvendo temáticas que basicamente têm a ver com relacionamentos, responsabilidades e comprometimento emocional, ambiente de trabalho, entre outros. E, indo além, certamente o elemento de maior destaque aqui seja a temática feminista, apresentada de maneira brilhante pelas duas personagens principais. Tuca (Tiffany Haddish) é extrovertida, desbocada e pouco comprometida com uma vida regular, já Bertie (Ali Wong) sofre de ansiedade e tem muito medo de tomar decisões importantes, criando cenários hipotéticos na sua cabeça que rendem boas risadas.
Na humilde opinião desta feminista que vos fala, essa tendência da nossa badalada plataforma de lançar séries com pautas de diversidade e liberdade sexual no centro das tramas é louvável, e desde já preciso fazer uma menção honrosa aqui a (Des)encanto, outro excelente exemplo de como a fantasia da animação foi bem-sucedida ao abordar questões do cotidiano feminino como assédio sexual, moralização do comportamento feminino ou mesmo tabu sobre a nudez das mulheres, representados em ambas as séries por meio da vivência das personagens femininas.
Em Tuca & Bertie ocorre o interessante emprego de animais antropomorfizados que constroem personagens extremamente carismáticos, conquistando nossa afeição já nos primeiros episódios. E, vale ressaltar, apesar desses personagens se iniciarem como caricaturas ou estereótipos – a mulher empoderada e porra louca versus a mulher consciente de seu lugar social mas ainda com dificuldades para impor suas vontades e opiniões – ao decorrer dos episódios eles vão se mostrando mais do que isso, apresentando-nos sentimentos mais elaborados e escolhas ousadas.
Além de todo o conteúdo representativo e filosófico-existencial, esta é uma série divertida, leve, com uma arte gráfica belíssima, colorida e atrativa – um destaque especial para os seios, retratados sem tabu, que estão por todo o cenário e personagens – além de uma trilha sonora excitante com notas de hip hop e música eletrônica, que nos fazem assistir os episódios balançando a cabeça no ritmo. E por falar em ritmo, a aceleração é a cereja do bolo, que faz da série um entretenimento de qualidade sem ser maçante e monótono. Por todos esses motivos, Tuca & Bertie entra para o hall de ótimas opções do gênero comédia e animação, sendo parada obrigatória para quem curte os dilemas da vida moderna.
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