Crítica: A Vida Pela Notícia (Morir para contar)
“Lá está nosso companheiro Kemmerich, que até há pouco ainda assava carne de cavalo e se agachava junto conosco nos buracos abertos pelas granadas; ainda é ele, porém já não é mais ele; suas feições ficaram imprecisas, indistintas, como duas fotografias sobrepostas na mesma chapa. Até sua voz soa como se viesse do túmulo.” REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. São Paulo: Abril Cultural, 1981, p.18
O ano era 2014 e o mês de março iniciava o meu penúltimo período de faculdade, a reta final de uma longa e árdua jornada. Apesar do cansaço, certo pessimismo em relação ao futuro e uma rotina de estudo e trabalho pesada, ainda conseguia tirar proveito e motivação de aulas cujos conteúdo e reflexões nos tiravam da zona de conforto, nos desequilibravam e desconstruíam, reforçando o ofício do historiador que é, antes de mais nada, desconfiar. A disciplina em questão, Contemporânea IV, tratava do tema das Grandes Guerras do século XX e sua influência nos grupos humanos – mentalidade e comportamentos – e foi responsável por me mostrar o quanto o espírito humano foi/é afetado, atormentado, assombrado, pelo contexto histórico de uma guerra.

Se A Vida Pela Notícia tivesse sido lançado no ano de 2014, certamente teria sido indicado na bibliografia daquela disciplina, pois dialoga perfeitamente com tudo o que discutíamos sobre a morte, a barbárie, a suspensão da moralidade, a solidariedade, o medo e permanente sensação de incompreensão que um conflito armado suscita naqueles que o vivem cotidianamente. Lançado no ano em que o clássico da literatura e do cinema Nada de Novo no Front, que aborda os horrores da Grande Guerra pelo ponto de vista de jovens garotos, completa 90 anos, o documentário do jornalista espanhol Hernán Zin retrata, no contexto dos conflitos atuais, as mesmas questões presentes no imaginário dos envolvidos nos conflitos há mais de 100 anos, e é um soco no estômago e um lembrete para nós de que os horrores de uma guerra extrapolam os limites territoriais e interesses políticos envolvidos, afetando de diferentes maneiras o mundo exterior.
No caso da atualidade, Hernán nos mostra que o mundo exterior somos nós – sociedade ocidental de maneira geral – que apesar das adversidades locais, somos privilegiados por estarmos afastados de um cotidiano de invasões, bombas, tiroteio e conflito armado financiado por Estados que não colocam em sua plataforma política a vida de milhões de civis. E o elo que nos liga ao inferno vivido por essas populações diariamente, que busca nos conscientizar dos danos causados pelo jogo de poder de políticas externas egoístas, é construído pelo trabalho de toda uma gama de profissionais do jornalismo – fotógrafos, operadores de câmera, editores, repórteres – cujo empenho em narrar os acontecimentos desses outros “mundos”, nos quais o caos e a insegurança reinam, significa, quase sempre, abdicar de sua segurança física e saúde mental.
Trabalhando há mais de 20 anos como correspondente internacional, Hernán se viu paralisado durante uma cobertura no Afeganistão em 2012 pelas sequelas psicológicas de seu trabalho, que, apesar do reconhecimento profissional, lhe custaram a estabilidade e saúde mental. Em processo de recuperação de uma depressão severa, o jornalista constrói o documentário em questão justamente como uma forma de externalizar seu conflito interior, escolhendo narrar a trajetória de vida de seus colegas de profissão – incluindo a morte brutal e chocante de alguns deles – como meio de catarse, para ajudá-lo não apenas com seu sentimento de solidão diante da angústia que é carregar as lembranças do que viveu, como também para promover a conscientização sobre os danos emocionais que presenciar conflitos internacionais como ganha-pão é capaz de gerar.
Em cerca de 90 minutos, somos arrancados de nosso cotidiano de problemas banais e lançados no desespero de zonas de guerra repletas de civis indefesos, através dos relatos e materiais dos jornalistas de guerra entrevistados. Dentre diversas questões, o tema recorrente das falas dos entrevistados se baseia na ideia dos riscos da profissão e o preço real pago por cada um destes ” sobreviventes”, que é, antes de mais nada, a sensação de impotência e certa culpa pelas mortes dos colegas, um luto permanente, que não os abandona. Aliás, o próprio título original em espanhol revela a sensação comum a todos esses profissionais que tiveram que “morrer para contar”, ou seja, abdicar permanentemente de uma parte de sua alma, de sua sanidade psíquica e normalidade social, em prol de suas histórias.

O ritmo acelerado que o belíssimo trabalho de edição nos apresenta reforça o olhar de urgência do jornalismo em questão, ao mesmo tempo em que colabora para nossa sensação de angústia diante da solidão e medo constantes na narrativa dos entrevistados. Os riscos sofridos, o luto das famílias, o alerta constante do cotidiano dos correspondentes, a dedicação absurda ao tema do “narrar o humano pelo olhar do humano”, as sequelas do estresse pós-traumático e, sobretudo, a sensação constante de desajuste – de que são outsiders ao voltarem para casa – preenchem o teor das entrevistas, construindo para o especador a sensação de familiaridade com os personagens ali presentes. Quanto ao teor de qualidade dos materiais gravados nas zonas de conflito – fotografias e filmagens – acredito que nem seja necessário comentar, uma vez que os profissionais envolvidos são representantes excepcionais de grandes veículos da comunicação internacional.
Por todos esses elementos, acredito ser absolutamente necessário assistir A Vida Pela Notícia, por nos mostrar que quando se vive uma situação de guerra, seja em qualquer contexto histórico, é difícil voltar à “banalidade” da vida comum. Adaptar-se novamente à rotina se mostra insustentável para essas pessoas, que não serão jamais capazes de esquecer as experiências vividas. Afinal, apenas compreendem o horror e o medo aqueles que já os presenciaram e sentiram.<P
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