Crítica: Virando a Mesa do Poder (Knock Down The House)
Sendo bem direta, não espere uma análise imparcial aqui, porque isso não existe. Somos estimulados, tocados, incentivados e levados à ação pelas representações discursivas que dialogam com nosso lugar de fala e de origem, sendo nossa subjetividade construída por nossas experiências e trajetória de vida. Isto posto, já adianto que considero Virando a Mesa do Poder um documentário tocante e inspirador, que merece ser assistido sobretudo pelas novas gerações de mulheres e meninas que mais do que nunca se identificam com a clássica pauta do Pessoal é Político.
Devo confessar que os últimos documentários lançados e disponibilizados pela Netflix sobre a temática feminista me abalaram foda: She’s Beautiful When She’s Angry, que resgata depoimentos de quem participou da luta por direitos e dos movimentos de mulheres nas décadas de 1960 e 70 nos EUA, assim como Feministas – O Que Elas Estavam Pensando?, que mostra o trabalho empoderador de uma fotógrafa engajada com a pauta feminista e com o debate sobre a liberdade sexual das mulheres, também durante a chamada segunda onda do feminismo, e, ainda, o recente curta indicado ao Oscar Absorvendo o Tabu, no qual o empreendedorismo feminino no ramo da produção de absorventes de baixo custo é narrado como um ato de resistência contra a cultura machista da Índia, um dos países com os maiores índices de violência à mulher do mundo. Com o documentário de Rachel Lears não poderia ser diferente, uma vez que, tal como os outros, ele é bem sucedido em apresentar a luta feminina por voz nos espaços públicos de poder e representação eleitorais.
Lears acompanhou, durante 2017 e 2018, o cotidiano de quatro mulheres que se dispuseram a encarar a correria e os desafios de uma disputa eleitoral alternativa, com base no apoio comunitário e na arrecadação de doações pelo trabalho de voluntários. A iniciativa para essas candidaturas surgiu do movimento Brand New Congress, criado após a corrida presidencial que elegeu Trump em 2016, e seu objetivo consiste basicamente em recrutar representantes locais, sobretudo das classes trabalhadoras e minorias étnico-sociais, que possam ser lançados como alternativas novas, progressistas e revigorantes para o Congresso norte-americano, ainda dominado por uma elite jurídica e intelectual, em sua maioria masculina e branca.
E é extremamente excitante acompanhar as histórias de Alexandria Ocasio-Cortez, representante pelo Bronx e Queens, Amy Vilela, por Nevada, Cori Bush por St. Louis, Missouri, e Paula Jean Swearengin, candidata da Virginia Ocidental. Cada uma delas possui uma motivação pessoal e uma trajetória de vida que as coloca como fortes representantes populares e, independentemente dos resultados possíveis, suas movimentações em torno da campanha e as pautas e debates que levantam em suas comunidades por si só mostram a importância que o engajamento popular no cenário político representa.
Assistir às histórias paralelas de cada candidata e, sobretudo, sua esperança de que a mudança é possível é estimulante. Essas mulheres, simbolicamente, representam mais do que a luta feminina por representatividade, elas representam a resistência de valores sociais, das necessidades mais básicas do cidadão comum, como direito à moradia, saúde e educação públicas e de qualidade.
O gênero documentário é maravilhoso por trabalhar com o real, mas não podemos esquecer que todo documentário é uma representação específica de um ponto de vista, fruto, portanto, das escolhas e motivações de seus produtores e roteiristas. Por isso, é bom lembrar que, apesar da forma realística como a rotina das campanhas e o dia a dia das candidatas são retratados, obviamente, devemos lembrar que o trabalho de edição, assim como também em qualquer filme de ficção, está orientado pelo objetivo específico de produzir o apelo sentimental. E, nesse ponto, objetivo alcançado com sucesso: assistir ao processo de enfrentamento dessas quatro mulheres a um sistema eleitoral estagnado, dominado por homens brancos patrocinados pelas grandes corporações faz aquela indisposiçãozinha chata causada pelo colega de trabalho/faculdade egocêntrico parecer reclamação de criança.
Devo confessar que por não conhecer o resultado das eleições, fiquei ainda mais aflita com o desfecho de cada história e absolutamente encantada com a Vitória de Alexandria Ocasio-Cortez, a qual desde o início recebe destaque na narrativa por sua personalidade forte, força de vontade e carisma absurdos, ferramentas que usa com maestria na disputa contra seu concorrente. Nesse ponto até tinha esquecido que era documentário e me peguei torcendo por aquela “personagem” tão cativante e determinada.
Em resumo, esta é uma obra motivacional recheada de empoderamento feminino e diálogos interessantes e extremamente relevantes para o cenário atual, sobretudo pra nós que vivemos num país em que continuamos a ser representados por homens brancos e cujos interesses refletem uma classe dominante e privilegiada. Virando a Mesa do Poder serve antes de mais nada para nos lembrar de “ouvir as Marias Mahins, Marielles, Malês” do passado e do presente, que não deixam a nossa esperança morrer.
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