Crítica: Black Mirror T05E03 - Rachel, Jack and Ashley Too

Rachel (Angourie Rice) é, às vésperas de completar 15 anos, a imagem de tudo o que não queríamos ser aos 15 anos, mas, por ironias da vida, muitos de nós não conseguiu escapar. Tímida, sozinha, sem amigos, numa nova escola e com um pai que trabalha com desratização e anda para baixo e para cima num carro decorado para parecer um roedor gigante, ela é a encarnação das samambaias que passaram despercebidas pelos anos do Ensino Médio. Para completar a teia (ou, no caso, a ratoeira) de desgraças, a menina ainda tem que lidar com a perda precoce da mãe. Dividindo o quarto com a quase misantropa e roqueira irmã, Jack (Madison Davenport), a menina só encontra refúgio nas músicas e na vida de uma certa popstar.

Ashley O (Miley Cyrus) é a tal estrela. Com suas músicas, cujas letras parecem terem sido tiradas de livros de autoajuda, cheias de “acredite em você” e outros petardos que fariam a alegria e encheriam os powerpoints de coaches mundo afora, ela lida com uma vida que, na real, é uma desgraça só, ao contrário do mundo edulcorado que a mídia e sua assessoria de imprensa espalham. Deprimida, controlada por uma megera e exploradora tia/empresária (Susan Pourfar), a cantora se vê explorada em uma existência na qual sua música não a representa e de onde não enxerga saída. Com seu novo lançamento, a Ashley Too, uma boneca, espécie de inteligência artificial, que, dotada da voz (e, spoiler alert, prometo que vai ser só esse) e de um pouco mais da Ashley original, unirá as histórias das moçoilas citadas até aqui.

“Isso é tão Black Mirror” se transformou em uma frase da cultura que mostra o quanto os episódios refletem os tempos em que vivemos. Rachel, Jack and Ashley Too talvez peque por um excesso de otimismo e uma escolha, tanto estética quanto conceitual, por uma leveza que destoam do quadro geral da série. A parte final do episódio, por exemplo, caberia de boa num filme da Sessão da Tarde.

No entanto, os outros elementos nos lembram bem do soco no estômago que a série consegue ser. De cara, o maior acerto de todos está na escalação de Miley Cyrus para o papel de Ashley O. Além de uma atuação que pode ser resumida por impecável (não vou parar em uma palavra só, tenho que falar: ela está muito, muito boa. Mesmo.), a escolha da atriz cria um universo paralelo que reverbera num intricado e intencional pastiche do contemporâneo. Afinal, Miley Cyrus estreou para o mundo vivendo uma estudante do ensino médio que guardava o segredo de ser a estrela pop Hannah Montana. E, logo depois, Cyrus atinge o máximo do estrelato ao ousar romper, de forma escandalosa e chocante, com os estereótipos moldados pela herança de ter sido uma estrela da Disney. Isso é muito Black Mirror.

Também é de se elogiar a maneira como o episódio toca em temas que escancaram os espinhos do nosso mundo. Da nossa dificuldade em lidar com a tristeza e a solidão, resultando numa sociedade do entorpecimento (por remédios, pelo consumo, pela nossa obsessão pela vida e persona dos artistas), passando pelos (des)limites que as inteligências artificiais vem tomando (aliás, um beijo para a Siri, meu relacionamento mais estável), Rachel, Jack and Ashley Too, malgrado os momentos Sessão da Tarde, prova o quanto os criadores da série ainda estão antenados com a realidade das almas do século XXI.

Ah, não deixem de prestar atenção na muito bem urdida trilha sonora. Debochada, ela amplia bastante a narrativa e os horizontes do episódio. Afinal, invocando Caio Fernando Abreu e sua Pode ser que seja só o leiteiro lá fora – a peça mais tão Black Mirror que vi – “o fim do mundo era o silêncio e o vazio” e “a maneira de vencer o fim do mundo era enchê-lo de sons e de cores”.

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