Crítica: Democracia em Vertigem

“Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não(…)”

Foi Caetano que fez essa música. Ele, assim como Gal, Gil, Rita Lee e Tom Zé, fez parte da resistência na ditadura com o movimento da tropicália e partilhava a cena musical com outros grandes nomes como Chico, Vandré e Jobim. A vivência artística nesse período explica as sábias palavras de quem não tem credo mas, mesmo assim, viu ressurgir algo admirável: um Brasil democrático após 20 anos sob regime autoritário militar. Em paralelo, havia nos confins da carioca Vila Valqueire meu avô, Darcy, que não poderia cagar mais para Caetano e toda galera da MPB, como bruto mineiro que era. Mas tanto meu avô, soldador de navio da marinha, quanto Caetano, artista cult, tinham uma coisa em comum: a esperança na democracia e na luta por ela, seja pela música nacional ou pelo movimento sindical – como era o caso de meu avô. Resistência era a palavra que os unia.

Não pense, contudo, que a resistência fincava seus pés em terreno firme. Caetano e Gil tiveram o tapete puxado com o AI-5, em 1968, quando os militares acharam no decreto a brecha pra proibir apresentações e prendê-los; foram pro exílio em Londres, no final. Meu avô teve o dele antes, em 1964, com o AI-1, e foi afastado compulsoriamente após ser preso por “atentar contra a segurança do país” por ser comunista, sindicalista e militante; não foi pra Londres, mas por sorte foi pra casa e pouco tempo passou na cadeia. Dizia ele que não foi torturado, mas chorava ao telefone ao falar com os amigos depois de velho sempre que o assunto era política – e esses sei que ele viu torturarem.

Dito isso, inicio esse texto com o seguinte pedido: se você que lê acha que a ditadura que ocorreu em 1964 em nosso país deve ser repetida, peço por favor que feche essa página. Não é necessário ser de esquerda pra ser humano.

Petra Costa percorre a história política do Brasil e tem como ponto de partida a análise dos rumos da democracia, desde a redemocratização “lenta, gradual e segura” ocorrida nos anos 80 até a atual democracia, que passa por considerável instabilidade. O grande foco de Petra é retratar a nível de alcance e entendimento internacional o contexto político brasileiro, e é nos anos 2000 que vive o grande divisor de águas na nossa política, tradicionalmente oligárquica e/ou conservadora até então: a eleição de Lula em 2003. De maneira emocionante, entrelaçando com depoimentos de eleitores (da oposição também), a cineasta põe em tela as expectativas e necessidades da população daquela candidatura.

O contraste com o agora é inevitável; se em 2003 as classes baixa e média conseguiam se direcionar a um só candidato e conciliar seus interesses, hoje ambas em muito se fragmentaram, desiludidas ao longo dos anos, de forma a procurar linhas paralelas ou até bizarramente opostas às propostas progressistas que o Partido dos Trabalhadores propôs em sua origem. Os movimentos de direita viram nisso uma oportunidade, é claro, e abriram seus braços hegemônicos e consistentes para essa multidão desconsolada, ao mesmo tempo que cresceram internamente e frutificaram ideias que uma década atrás não tinham espaço ideológico para germinar.

Lula, que viria a ser um dos mais populares presidentes do Brasil, ainda no início de carreira como líder do movimento sindicalista no ABC Paulista durante a ditadura militar.

Após a eleição de Lula e os dois mandatos muito bem avaliados pela população – afinal, a aprovação do presidente passava de 80% na sua saída em 2010 – as pedras que, na encolha, já desmoronavam o PT começaram a aparecer. É no impeachment (golpe) de Dilma em 2015, quando ela iniciava seu segundo mandato, que oficializava-se a presença de uma ideologia que traria com solidez o atual (e mortal) antipetismo. O documentário busca analisar os porquês, numa essencial autocrítica que considera as alianças com o PMDB pra chegar ao poder quanto nas concessões durante o exercício, que foram abrindo espaço para que a rasteira se tornasse iminente.

A questão é: se a sede antipetista fosse pela supressão de um partido tão somente, ótimo; no entanto, pelo que o partido representava, outros “anti” muito mais alarmantes deram as caras: acirrava-se a intolerância religiosa e o fundamentalismo, sexismo, racismo e o ódio aos pobres deixava de se esconder. Os grupos prejudicados por essa ascensão inevitavelmente perdiam força pelo êxodo político ou inativismo, seja por decepção ou paralisia diante do espetáculo midiático montado nas TVs, jornais e internet (a terra sem lei das fake news e pensadores de Facebook).

“Lobo em pele de lobo”: Michel Temer como vice de Dilma está entre uma das muitas concessões feitas pelo PT para continuar com força política – ainda e ceder representasse um risco.

Petra conduz o debate sobre a concessão política com clareza e cuidado, munida de entrevistas e registros de diversos espectros. Junto a isso adiciona as incoerências políticas da oposição e as até hoje ilegítimas razões para o afastamento da presidenta, assim como as inconclusivas provas contra o ex-presidente Lula que o levaram à prisão no ano de 2018. Inevitavelmente, o documentário traz uma visão perturbadora – e não tem como ser diferente – da política brasileira nos últimos anos, que deu espaço para ideias para além da polarização esquerda e direita ressurgirem em nosso cotidiano. Para o ódio, em sua mais pura e intensa forma, ser usado como catalisador político como desde a ditadura não era feito. Trocou-se “comunista” por “petista” e rebobinaram a fita, mesmo que ela parecesse totalmente obsoleta.

A qualidade de consultoria do documentário é impecável. A narrativa segue um acertado tom entre o poético e o jornalístico; no entanto, não é possível deixar de comentar que, ao final da produção, o tom de denúncia tão decididamente usado por Petra é substituído pela já citada paralisia política. Descrever com tamanha propriedade a situação brasileira pra ao final mostrar-se perdida, apesar de humanamente compreensível, é uma perda de tempo e estamos, literalmente, “sem tempo, irmão” no momento de agora. Petra presta um serviço de excelência no que diz respeito à denúncia, em especial a nível internacional, mas deixa a desejar no estímulo à resistência que ela mesma tanto valoriza no início da narrativa, por ser filha de militantes. Não “te falta ódio”, Petra, acredito eu; falta esperança mas que é imprescindível na atual conjuntura. Afinal, Gal nos alerta em como resistir: atentos e fortes. Sem tempo de temer a morte – até se for a da democracia.

“Podem morrer as pessoas, mas nunca suas ideias.” (Che Guevara)

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