Crítica: Está Tudo Certo (Alles ist gut)

Sempre que há um caso de estupro que repercute nas mídias sociais, seja envolvendo celebridades ou cidadãos anônimos, há questões polêmicas que insistem em ressurgir. No geral elas são voltadas à vítima, é claro, visto que vivemos numa sociedade que foi estruturada para culpabilizá-la e descredibilizá-la. Uma grande pergunta que é feita é sobre o tempo que a vítima levou para reportar o estupro às autoridades; por que há casos que passam-se meses ou até anos para fazer uma denúncia? Ou quando o estuprador ainda é alguém do ciclo social da vítima, é posto em cheque se a história é verdade já que há permanências (como o caso de um abusador ser da família ou grupo de amigos e a vítima continuar convivendo com ele, por exemplo). Por fim, a sociedade é tão doente que é dificultoso por vezes até mesmo assimilar o conceito de “estupro”, mas simplifiquemos aqui: tudo a partir do “não” é estupro.

Está Tudo Certo propõe um exercício de compreensão ao telespectador, na medida em que mostra a história de Janne (Aenne Schwarz), uma mulher que, como tantas, escolhe seguir com sua vida “normalmente” após ser estuprada. Ela alterna entre ter consciência da violência e negá-la e não partilha com ninguém o que aconteceu; porém, tal omissão tem consequências diretas em sua vida afetiva e saúde psicológica. O relacionamento que tem com Piet (Andreas Döhler), que já parece confuso o suficiente por si só, ganha novas barreiras de comunicação que se engrossam por conta do silêncio de Janne. Soma-se isso à seu novo trabalho, que tem a macabra condição de dividir espaço com seu estuprador que trabalha na mesma editora que ela.

O caso do filme serve para desmistificar que o estupro acontece no geral em uma viela deserta à noite por um sujeito desconhecido que o imaginário constrói como alguém antissocial, doente ou psicopata. Entretanto, o sujeito muitas vezes é alguém absolutamente comum, que paga seus impostos, é um marido amoroso e ama os animais – e isso é ainda mais assustador, e é por isso propositalmente afastado do debate sobre o estupro por obrigar a discutir os porquês que não mais se justificam em transtornos mentais individuais, mas, sim, coletivos e sociais.

Por que Janna escolhe, a todo custo, o silêncio – ainda que esse silêncio se mostre um caminho cruel, solitário doloroso? Não há uma única resposta para isso, mas aqui vão algumas. O silêncio é como uma capa de invisibilidade sobre o indesejado, ainda que essa seja uma ideia delirante e que você saiba que capas de invisibilidade são ficcionais. Afinal, por vezes, a fuga para o ficcional é o que torna o real praticável. Além disso, quão custoso pode ser a fala? Um emprego? Um relacionamento? A fala tira a capa e expõe; e o custo dessa exposição pode ser tido como muito alto para algumas pessoas.

Ainda que trate de uma temática extremamente necessária e sensível, o filme tem um ritmo que arrasta e não conta com grandes diálogos – o que creio ser até intencional, mas que, na minha percepção, deu à obra um tom frio e indiferente. A falta de afeto dentro da história, em absolutamente todas as cenas, é agonizante, e é difícil dizer até que ponto todo distanciamento no roteiro foi orgânico, fruto de uma sociedade culturalmente mais fechada se comparada com a nossa, ou premeditado, manchando a narrativa com certa inanição.

Por fim, o fato é que o abuso te coloca em conflitos internos inevitáveis. Há a vontade de seguir em frente enquanto ainda se vive as sequelas, custe o que custar. Há também vontade de sabotar-se quando tudo vai bem. A tentação de silenciar-se como alcance mais rápido da cura existe, mas esse atalho pode ser só um disfarce do profundo medo de tocar na ferida. De maneira um pouco confusa, mas bem intencionada, o filme Está Tudo Certo mostra que não se acorda cicatrizada da noite pro dia e que negar processos, por mais arrasadores que eles sejam, não soluciona e sim prorroga embates emocionais –  pois eles eventualmente vêm e resta estar preparada para enfrentá-los.

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