Crítica: Graças a Deus (Grâce à Dieu)
Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, – e resiste.
Aos 40 anos, casado, pai de 4 filhos, bom profissional e católico fervoroso, Alexandre Guérin (Melvil Poupad) recebe a notícia de que o padre de sua infância, o hoje velho Padre Preynat (Bernard Verley), ainda trabalha com crianças. Rompendo o silêncio de uma vida inteira, Alexandre revela o segredo de dor que guardara em si: durante anos, ele foi vítima de abusos sexuais por parte do sacerdote. Decidido a proteger as vidas de outros meninos, ele denuncia o caso à Igreja e tem de lidar com os meandros obscuros da instituição que insiste em se proteger e proteger o pedófilo. François e Emmanuel (Denis Ménochet e Swann Arlaud), duas outras vítimas do padre, se unem a ele em um movimento para romper o silêncio e liberarem-se desse fardo. Juntos, os três terão suas vidas (ainda mais) transformadas e darão início a um dos maiores escândalos da Igreja Católica na França.
É baseado nessa história real e recente (o veredito judicial sobre o caso foi dado apenas em março deste ano) que o genial François Ozon leva às telas seu mais novo filme, Graças a Deus. O longa é uma guinada na trajetória – ainda impecável – do diretor e roteirista francês. É sua primeira produção baseada em uma história real e exibe escolhas estéticas que escapam à estilização tão cara à sua filmografia. Mas, sim, Ozon acerta mais uma vez.
Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto, se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente…
A produção não hesita em tocar na ferida da pedofilia sem meios termos. Em uma virada real na condução das cenas, Ozon abre mão das marcas mais patentes de suas mãos em seus filmes, como a maneira única de arrancar interpretações inusitadas de seus atores, para que a seriedade do tema tome a tela. Temos aqui um Ozon mais discreto enquanto maestro, regendo uma sinfonia na qual sua batuta se retrai para que a partitura apareça sem tergiversações. Mas, um mestre é um mestre e, em nenhum momento, tem-se a sensação que alguns longas passam de terem se dirigido sozinho. Não. A mão do diretor está ali, ainda que, em alguns momentos, percebamos apenas os seus dedos.
Nas ocasiões mais “ozonianas” de Graças a Deus, brilham duas das mais marcantes características de sua obra. Primeiro, o uso único que ele faz das movimentações de câmera. Com ele, a câmera ganha plasticidade e movimento, passeando, subjetiva e sorrateira, pelas pessoas, revelando em imagem os escondidos de seus interiores. Segundo, devia haver nas faculdades de cinema uma disciplina chamada “ângulos de Ozon”. Meu Deus, eu ando pelo mundo prestando atenção em cores de Almodóvar e em ângulos de François Ozon. Seus enquadramentos continuam a surpreender de forma quase mágica.
Cabecinha boa de menino mudo,
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.
No entanto, o ponto mais genial da direção neste filme é o fato de ela acompanhar e se moldar à focalização de cada personagem principal. É como se o diretor se valesse de três modalidades de direção para três filmes diferentes que, em nenhum momento, perdem a noção de que, de fato, são um único filme. Assim, quando o foco está em Alexandre, temos uma direção mais densa, “francesa”, lindamente resumida pelo 1º terço do filme, quase todo epistolar. Quando os olhos se lançam ao olhar de François, o longa se traveste quase que em filme de ação, americano, com ecos de “Spotlight“ (cujo tema é o mesmo), uma pegada agressiva. Em Emmanuel, o longa experimenta seus poucos momentos de estilização, algo mais próximo do “clássico” Ozon. É uma corrida de revezamento magistralmente executada.
A fotografia discreta, mas extremamente eficiente, conversa com o roteiro elegante, que – sem abrir mão de ironias e, em alguns momentos, até de um certo humor – denuncia com veemência o quanto a pedofilia na Igreja é monstruosa, pois, além de destruir a infância e deixar marcas no corpo e na vida das vítimas, também corrói a fé, os relacionamentos e a esperança. A ótima edição imprime ao filme um ritmo excelente, fazendo com que suas mais de duas horas sejam tensas, incômodas, reflexivas, mas nunca enfadonhas. Tudo isso embalado em uma trilha sonora que se molda e ajuda a narrar o que se vê. Inclusive quando silencia.
Cabecinha boa de menino santo,
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto
Graças a Deus é uma obra dos nossos tempos. Dói, corta e faz pensar. Revolta, também. Acima de tudo, mostra o quanto o abuso sexual de crianças tece uma teia de sofrimento que enlaça a sociedade inteira: começa no indivíduo, arrasta a família, engendra a comunidade e mancha a Humanidade em seu todo. Como no fim do poema “Criança”, de Cecília Meireles, que perpassou esta crítica, o longa nos faz olhar para a tela
Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.
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