Crítica: Hip-Hop Beats (Beats)
Há algo que me agrada na maneira como a Netflix deciciu se colocar no mercado de produção audiovisual. Eles têm dinheiro. Provavelmente mais do que a maioria dos major studios mundo afora. Possuem seu próprio meio de distribuição e têm acesso direto ao público final. Isso concede certas liberdades que Hollywood deixou de ter já há muito tempo. A Netflix pode se arriscar e esse risco calculado (filmes curtos, sem excessos de produção ou efeitos especiais) tem rendido bons frutos. É um formato que lembra o inicio da própria Hollywood, quando os estúdios lançavam filme atrás de filme, corrigindo o curso passo a passo, engordando em renda e público. Este Hip-Hop Beats se encaixa em boa parte do que eu descrevi, servindo de bom exemplo para os acertos e erros do modelo adotado pelo canal.
O filme é dirigido por Chris Robinson, premiado diretor de videoclipes de gente como Usher, P.Diddy, 50 Cent, Ludacris, Prince (a lista continua), além de documentários e longas que abordam em sua maioria a música negra americana e traz consigo não apenas a capacidade técnica mas o conhecimento de causa para falar do mundo do Hip-Hop. No longa, August Monroe (Khalil Everage), um adolescente da South Side de Chicago e metido a “membro de gangue” vê sua irmã ser morta por uma bala que deveria tê-lo acertado. Vivendo um severo caso de estresse pós-traumático, August passou o último ano isolado em casa, olhando o mundo – e Niyah, a gatinha com quem ele andava antes da tragédia – pela janela, aprendendo a usar o computador para compor música. Um dia, Romelo Reese (Anthony Anderson, num papel bastante mais sério que o de costume, e convencendo como tal), um segurança da escola que August deixou de frequentar, bate em sua porta e descobre que o garoto é um prodígio da música eletrônica. Coincidentemente (é claro), Romelo é um ex-empresário, responsável pela carreira de um famoso rapper e decide intervir para que o talento de August seja visto pelo mundo.
Tudo corria bem com essa sinopse até que a Netflix resolveu dar à produção 20 minutos além dos habituais 90 vistos em boa parte dos lançamentos do canal. E é impressionante como simples 20 minutos podem atrapalhar uma boa história. A premissa é quase que infalível: a história de superação de um menino pobre e traumatizado através da música, ajudado por um mentor mais experiente. Trilha sonora de primeira linha, elenco respeitável – Uzo Aduba, de Orange is the New Black, é a mãe de August, Paul Walter Hauser, de Infiltrado na Klan, é o cuzão dono da gravadora, e o próprio Anthony Anderson como um empresário falido por sua própria ganância -, produção impecável, performances de rap que poderiam ser videoclipes em si mesmas, mas, mesmo assim, o filme foi cansativo de assistir pelo simples fato de que tentou-se incluir mais do que o necessário. Tentou-se descrever com imagens como é a sensação de se viver com estresse pós-traumático várias e várias… e várias vezes, de várias formas diferentes, com vários efeitos especiais e recursos de câmera diferentes. Depois de se utilizar todo o repertório técnico para se causar vertigem, ficou-me a sensação que a atuação de Khalil Everage, em desespero ao ver Romelo Reese em sua casa pela primeira vez, foi mais que o suficiente para que se entenda que “ok, o guri tá MUITO fudido emocionalmente”.
Houve a inclusão de diversas cenas e personagens desnecessários, como o momento em que Laz, um velho amigo de August, presente no dia em que a irmã do protagonista é morta, entra em sua casa para ameaçá-lo com uma arma caso ele saísse na rua e falasse com Niyah novamente. Ameaça que jamais se cumpre e que nada acrescenta à narrativa. Ou as várias (e várias!) vezes em que o garoto é chamado de covarde por não sair de casa com o argumento de que “Aqui é Chicago. É assim mesmo”. Ou o drama vivido por Romelo Reese e sua (ex)esposa, a diretora do colégio do garoto, que contratou o ex-produtor como segurança pra dar uma bola pro camarada na esperança que ele “pare com essa coisa de música”, o que só serve pra mostrar que Reese um dia foi casado e que sua esposa não gostava que ele trabalhasse com essa coisa de música. O tempo extra permitiu até mesmo uma montagem em uma loja de instrumentos musicais pra mostrar que o garoto que passou o último ano e poucos meses seguindo nos passos da irmã musicista morta é na verdade um virtuoso multi-instrumentista que além de produzir no computador, toca teclado, faz solo de bateria e entende de música Brasileira (yep, até Milton Nascimento é citado).
Some-se a isso uma avalanche de personagens mal-escritos (curiosamente entregues em atuações de alta qualidade), com Reese, que deveria ser o Obi-Wan de August, sendo mostrado como um incorrigível vacilão, egoísta, mentiroso e manipulador até os 5 minutos finais do filme, ou a “namoradinha” do garoto, que joga em sua cara um “para de ser cuzão, meu dois irmãos foram mortos e eu to aqui pronta pra ir pro baile de formatura e você vai ficar de piranhagem por que sua irmã foi assassinada na sua frente? Aqui é Chicago, bora pro baile!”, ou mesmo a mãe que deveria ser uma mulher traumatizada, super protetora e que se mostra apenas possessiva e insensível às tentativas do garoto em enfrentar seus traumas, e vemos uma boa história descer pelo ralo. Salvam-se, como dito, as atuações, a produção e direção de arte e a trilha sonora excelentes no que poderia ter sido um bom filme de hora-e-meia.
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