Crítica: Olhos que Condenam (When They See Us)
O sistema americano de justiça é um dos mais referenciados no mundo. A prova disso está na quantidade de produções do audiovisual que exploram sua dinâmica. O imaginário coletivo está cheio de tribunais com defesas emocionantes, casos televisionados, juízes com martelo (e talvez perucas?), advogados que cravam retóricas cirúrgicas e justiça, muita justiça – afinal, “lá as coisas são levadas a sério”, certo? Deixemos essa glamourização e síndrome de vira-lata de lado e encaremos uma realidade, paralelamente também estudada no Cinema: o racismo presente na sociedade americana e em tudo que lhe é produto. Isso quer dizer que o racismo se envencilha, sim, com esse sistema “modelo” aí, que tem a maior população carcerária do mundo e que, claro, é negra e latina.
Para compreensão mais aprofundada dessa questão, Ava DuVernay dirigiu e escreveu A 13ª Emenda, documentário já indicado em um Garimpo, no qual ela analisa a lógica política e econômica do sistema prisional que foi sendo desenhada ao redor do preconceito racial americano. Incansável, se no citado documentário Ava tece um panorama geral de como funciona o encarceramento e sua política neopunitivista, em Olhos que Condenam ela retorna ainda mais poderosa explorando um gritante exemplo que mostra que a falha judicial tem cor: O Caso dos Cinco do Central Park.
Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Salaam, Raymond Santana e Korey Wise são acusados – e quase que imediatamente condenados – de estuprar uma corredora branca em uma noite de abril de 1989 no Central Park, em Nova Iorque. O caso se sustenta de maneira inacreditável, já que não há nada em matéria de prova que não a mera presença dos garotos no parque na mesma hora do ataque, e a coerção policial em relação a menores de idade é descarada. A começar, a investigação da maioria dos meninos é feita com a ausência de seus responsáveis legais; garotos do Harlem que saíram para resenhar com seu grupo de amigos num esquema meio baderneiro comum à adolescência, se veem interrogados por mais de 10 horas seguidas.
Apenas uma sociedade adoecida durante séculos é capaz de conceber um caso tão absurdo quanto esse, que está longe de ser uma exceção e que tem características (como o abuso de poder policial, violência, sensacionalismo midíatico) repetitivos e já banalizados. O DNA encontrado no corpo da mulher era incompatível com qualquer daqueles garotos e seus depoimentos, frutos de um interrogatório exaustivo e brutal, cheios de gaguejo e furos na história. Nem mesmo todos ali se conheciam. Os garotos tinham como denominadores em comum a cor da pele, o bairro popular e a fragilidade juvenil, elementos que faziam deles bodes-expiatórios perfeitos para uma polícia temerária.

O acerto de Ava não é apenas pela escolha da temática que dá continuidade à sua narrativa antirracista e presta apoio a uma reforma da justiça criminal nos EUA, mas também pela brilhante abordagem sensível da vida atrás das grades, tanto da perspectiva do detento quanto de sua família, já que ambas são irremediavelmente mudadas. A diretora ouviu a história dos homens, como já contou em entrevista, e isto fica claro uma vez que ela não se limita a mostrar o desenrolar de uma perspectiva criminológica tão somente. Mostra-se preciso transmitir a aflição da vida prisional de punição extrema, acentuada pela injustiça daquelas condenações, e de como garotos que mal saíram da puberdade tiveram seu desenvolvimento humano freado, para não dizer podado, em tantos aspectos – dentro e fora da prisão.
O “passeio” pelas mentes dos cinco meninos é o ápice da produção, que esfrega na nossa cara o que não estava tão claro (por seletividade, é claro) à época: aqueles cinco são seres humanos, e não uma “matilha”, “animais”, como a mídia e até o atual presidente Trump (que se pronunciou à época sobre o caso, clamando pela retomada da pena de morte em NY) insistiam em pintar. Quanto mais afastado for o traço humano dos indivíduos de uma sociedade, e neste caso indo além do veredito de culpado ou inocente, mais inalcançáveis serão as reabilitações e até mesmo prevenções na segurança de um Estado. Olhos Que Condenam é um protesto contra a arbitrariedade de um sistema que justifica injustiças por meio de racismo e xenofobia e que está disposto a continuar capitalizando o medo e ansiedade da população em relação a esses grupos para se manter firme.

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