Garimpo Netflix #23: Sobrevivência

O Garimpo é um quadro do MetaFictions no qual indicamos toda semana bons títulos disponíveis nas maiores plataformas de streaming. Clique aqui para conferir os anteriores.


O ser humano, em sua longa e patética existência, a todo momento – seja ele qual for – tenta encontrar argumentos ou situações que lhe dê a comprovação de que é um ser evoluído comparativamente aos demais. Detentor de um ego supremo, vê-se como deus de carne, criando ilusões de super poderes que possam enganá-lo de forma a endossar o leviano pensamento soberbo de que a ele cabem todas as coisas; estas como se no papel de serventes.

Mas isso denota e evidencia sobretudo sua insegurança e particular pequenez diante de um Universo que se assume infinito. Desnudando-o dessas fantasias egocêntricas, o que sobra do homem nada mais é do que os mesmos elementos constituidores de todo e qualquer animal. Coloque-o em uma situação de extremo perigo e ele agirá como um gambá assustado ou uma aranha nervosa. Quando da busca por sua sobrevivência, todo ser vivo é reduzido ao mesmo patamar que os tira arbitrariamente de uma suposta cadeia de evolução.

Garimpo Netflix de hoje traz três títulos que atravessam, ainda que de forma bastante distinta, o tema da sobrevivência… ou a plena noção de que o ser humano não é nada além de uma sombra errante.


Uma Noite de Crime (The Purge), de 2013, dirigido por James DeMonaco

Estamos a contemplar a civilização em colapso. Assistir à televisão ou folhear um jornal; passar os olhos pela web; tudo se tornou uma ação quase que rejeitada por impulso. Nada além de catástrofes e destruição promovidas entre iguais. O íntimo contato com tamanha perversidade conforta tão somente mentes psicóticas, que se alimentam do medo gerado nos indivíduos. Mas o que estamos a contemplar, de fato, é a libertação de psicopatas travestidos de homens bons da sociedade. O ódio maquiado em palavras difere muito pouco daquele encarnado em gestos e realizações.

Uma Noite de Crime resolve colocar em prática o que ouvimos falar diariamente. Objetivando diminuir a criminalidade do país, o Estado admite, por 12 horas ininterruptas ao ano, liberdade total para os indivíduos. Dessa forma, grupos saem nas ruas para destruir vidas e construções. Essa iniciativa permitiu que estatísticas criminosas no restante dos meses diminuíssem vertiginosamente. Aos mais ricos, que não optam por participar de massacres particulares, cabe a edificação de fortalezas pessoais. Aos mais pobres, a vulnerabilidade se acentua. A ambos, resta apenas lutar pela sobrevivência desse meio-dia de caos pensado e, agora, também praticado.

Como em um simples peteleco, James DeMonaco faz ruir a frágil construção social humana, que ainda se mantém de pé, balançando ferozmente ao menor sopro de um vento qualquer.

A Ganha-Pão (The Breadwinner), de 2017, dirigido por Nora Twomey

Situado no Afeganistão de 2001, controlado pelos Talibãs, A Ganha-Pão conta a sensível história de Parvana, filha de um professor que, além de não ter uma perna, é proibido de exercer sua atividade como comerciante para sustentar a família, já que, sem qualquer justificativa aparente, fora preso pelo exército local (parece-me que não só lá o professor é o inimigo da sociedade). Sem a figura do patriarca em uma sociedade marcada pela ação masculina que a todo instante esmaga a figura feminina, Parvana e sua família se vêem sem saída para conseguirem sobreviver diante do caos promovido por uma cultura e Estado que não consideram as iniciativas deste gênero. A única possibilidade de Parvana é se fantasiar de menino para, da maneira mais sutil possível, garantir o ganha pão diário, que poderá alimentar seus familiares, fazendo-os passar por mais um dia.

Todo realizado em animação, o filme aborda a questão primordial do ser vivo, apresentando a luta diária que travamos (muitas vezes sem perceber) para conseguir existir. Para além disso, aprofunda-se no universo tão menos sedutor e tão mais ameaçador de homens que se entendem superiores, onde as leis sustentam esta forma de pensar e agir, tentando (mas não sempre conseguindo) minar os valores das mulheres.

Águas Rasas (The Shallows), de 2016, dirigido por Jaume Collet-Serra

Diferente das indicações anteriores, nas quais a sobrevivência se dá pela fuga do que o ser humano produz a si próprio, em Águas Rasas, a força humana é colocada em cheque ao se transformar na parte frágil da cadeia alimentar da natureza. A surfista Nancy (Blake Lively) está a poucos metros da costa, quando se depara com um tubarão branco pronto a realizar sua ação mais trivial do dia: alimentar-se. Tal qual fazemos diariamente, ao colocar um boi ou galinha abatidos por outrem em nosso prato, assim é o tubarão branco, que necessita de carne para atravessar mais um dia de existência. Nesse duelo da cadeia alimentar, Nancy (a nada super poderosa humana) tentará garantir sua sobrevivência, enquanto tenta frustrar a mesma luta íntima daquele ser marinho.

Muito mais do que um mero filme de tubarão a que estamos acostumados, este título investe na alegoria que a perseguição do devorador das águas sugere. Submergindo na construção pessoal da personagem, passamos a conhecer seus medos, desejos e seus questionamentos no que tange a vontade por viver.

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