Crítica: Jornada da Vida (Yao)
“Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
[…]
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro.”
Identidade, Mia Couto, “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”.
É sempre bastante sensível falar sobre identidade. Enquanto historiadora e professora de História, acredito que seja essa uma das questões mais importantes e ao mesmo tempo mais desafiadoras de se desenvolver com os alunos: perceber a identidade individual e coletiva dos sujeitos, ao longo da história, como fruto de um processo, marcado não apenas pela percepção subjetiva, mas também – e muitas vezes, principalmente – pelo olhar de outros sujeitos. Por essa razão, é bastante satisfatória a proposta do longa dirigido por Philippe Godeau , Jornada da Vida.
Estrelado por Omar Sy, famoso pelo espetacular “Os Intocáveis“, Jornada da Vida desenvolve a história de Seydou Tall, ator naturalizado francês após sua família deixar o Senegal quando ele era criança. Durante a turnê de lançamento de seu livro em Dakar, o ator retorna ao país de origem pela primeira vez, onde será assaltado pelas lembranças de seu passado, dando vazão a um conflito cultural e identitário há muito adormecido dentro dele. E como causador desse conflito encontramos o pequeno Yao (Lionel Louis Basse), um garoto de 13 anos apaixonado pelo livro de Tall a ponto de deixar seu pequeno vilarejo no norte do Senegal e atravessar mais de 380 km para conseguir o autógrafo do ídolo em seu livro.
Após o encontro dos dois personagens é que de fato a narrativa mostra a que veio, por meio de um roteiro bem escrito, dinâmico e leve ao propor o tema central de reflexão, a questão da identidade, mostrando a disparidade cultural entre um “mundo africano” e um “mundo europeu”. Seydou, ao retornar o longo caminho de volta com o pequeno Yao, é constantemente questionado acerca de sua identidade e origem, seja pelos diálogos com o inteligente e sensível garoto, seja pelas pessoas ou situações que eles encontram em sua jornada.
Obviamente, o tema da volta às origens ou mesmo da jornada de auto conhecimento é bastante comum desde a cinematografia mais cult até a mais popular. Porém, em Jornada da Vida essa discussão meramente filosófica abarca ainda a pluralidade cultural, entregando-nos uma narrativa com muita seriedade, na qual encontramos material para discutir desde a relação histórica de desigualdade entre a África e o resto do mundo – o mundo “arcaico” versus o mundo “civilizado” – quanto para debater temas como o preconceito social ou a importância da memória coletiva para a identidade individual e o fortalecimento psicológico dos indivíduos de uma sociedade. Há ainda um belo esforço de mostrar o papel da língua e dos pequenos rituais cotidianos – patrimônios culturais preciosos – no processo de construção da personalidade dos personagens.
Afinal, o que é ser africano? O que é ser negro, dentro ou fora da África? Qual é a influência e importância da cultura, das tradições, da língua, na vida das pessoas? Eis o interessante embate atravessado pelo personagem de Omar Sy, que reaprende o ritmo diferenciado da vida fora da França, evidenciando a diferença entre a noção de tempo urbana/europeia e a das comunidades africanas. Operando no esquema road trip, o longa nos apresenta ainda uma interessante fotografia, realista ao retratar o cotidiano dos vilarejos no Senegal, e ao mesmo tempo aventureira, ao apresentar a paisagem natural predominantemente seca e deserta.
Algumas leves pontas soltas no roteiro poderiam ter sido melhor exploradas, além da trilha sonora, pouco desenvolvida. Apesar disso, acredito que a sensação de estar assistindo a um daqueles clássicos filmes para família dignos da “sessão da tarde” seja suficiente para indicar Jornada da Vida não apenas como opção interessante de entretenimento mas ainda como fonte para a sala de aula, para qualquer professor interessado em discutir com seus alunos a relação importante entre identidade, cultura e memória.
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