Crítica: Brinquedo Assassino (Child's Play)
Brinquedo Assassino foi um dos principais responsáveis pelos meus pesadelos de criança ou a insônia que pairava sobre mim ao tentar dormir no quarto escuro iluminado pela luz leve e preteada da lua que adentrava por entre as cortinas. Eu era pequeno, com muitas histórias de espíritos para me deixar ainda mais vulnerável, e aquele conto sobrenatural de uma alma penada que tomava o corpo do boneco Chucky me martelava as idéias, fazendo-me pensar que, a qualquer momento, meus bonecos sairiam das gavetas para atacar. Décadas se passaram e junto com elas as continuações, cada vez mais zoadas, do título principal. Décadas se passaram e a criatividade do cinema americano diminuíra, fazendo-o embarcar em remakes e mais remakes. Até que surge Brinquedo Assassino (2019), revisitando o original, mas com uma premissa mais atual.
Buddi é um boneco de inteligência artificial (muito parecido com a idéia de “Rachel, Jack and Ashley Too” de Black Mirror), que não só é o principal amigo de uma criança, como pode se conectar a todos os aparelhos produzidos pela empresa Kaslan. De acionar comandos como ligar música, fazer o aspirador-robô funcionar, mudar a temperatura do quarto e ser uma companhia para seu filho pequeno, o boneco pode surgir como a resposta para a atarefada e preguiçosa (emocionalmente falando) família do século XXI. Programado para agir como tal, o produto é responsável por filas e mais filas nas lojas quando de seus lançamentos. No entanto, na fábrica em regime de trabalho análogo à escravidão, no Vietnã, um funcionário, para se vingar de seu chefe e suas humilhações constantes, desbloqueia todos os filtros de um dos bonecos. Este, com defeito, vai parar nas mãos da balconista Karen (Aubrey Plaza), jovem mãe solteira, que precisa resolver o problema da solidão de seu filho.

Andy (Gabriel Bateman; por sinal, irmão da maravilhosa Talitha Bateman, estrela e dona de uma atuação espetacular em “Annabelle 2“) é um garoto com problemas auditivos e tem que conviver com a nova mudança de lar, sendo obrigado a aceitar a presença nada agradável do namorado de sua mãe. Sem ter amigos, ganha de presente o Buddi defeituoso, que a mãe (sem dinheiro para comprar um) conseguiu para si após devolução de um cliente na loja. O problema do boneco é apresentado quando Andy tenta batizá-lo com um nome e o brinquedo assume para si “Chucky” (para uma galera aí “Tchôqui” – seria mais maneiro). A partir daí, o filme entra em seu momento mais interessante: como uma tábula rasa, no melhor sentido de John Locke, Chucky é moldado a partir daquilo que vê em seu dia-a-dia. O meio, portanto, passa a transformá-lo e a criar nele uma personalidade particular. Juntando os pontos de tudo o que vê diariamente, o boneco vai construindo sua própria narrativa interna até que passa a agir de acordo com uma auto-programação produzida pelas cenas, falas e circunstâncias de seu “habitat”.
Inspirado pelas sequências de filmes de terror splatter vistos por Andy e, agora, seus amigos (aproximados por Chucky, esse Buddi sem filtros) e pelas frustrações de seu dono, o brinquedo começa a agir, dentro de sua “ética” própria, em prol do “melhor amigo” Andy. Cada vez mais aterrorizante, Chucky vai mergulhando em uma psicopatia artificial, assustando todos ao seu redor, incluindo nosso protagonista. Abandonando, portanto, o que de mais interessante o título tinha até aqui, as sequência reproduzem o terror padrão. Mas não o terror padrão do século XXI; ele repete uma série de cenas já inconvenientes exibidas à exaustão nos filmes do gênero durante as décadas de 80 e 90. A premissa que mudara, quase que de maneira herética, abandonando o conto sobrenatural para inserir um atual acerca do fantasma da máquina, o terror da tecnologia que transforma pessoas em zumbi, de maneira a trazer um conteúdo tão mais sincero e urgente não é, por sua vez, responsável por trazer uma nova pegada à narrativa, que incorre em velhos clichês e cenas para lá de enfadonhas.

Por incrível que pareça, podemos dizer que Brinquedo Assassino tinha várias camadas de profundidade a serem exploradas. Desde a tecnologia como resposta imediata e solução-tampão para os problemas mais pessoais e íntimos das pessoas até a abordagem da construção de personalidade a partir do meio (podendo Chucky representar o indivíduo do nosso ou de qualquer tempo), o material que nos fora apresentado por Lars Klevberg em seu primeiro ato era, de fato, promissor. Sua escolha, porém, por abandonar os significados de seus signos e entregar uma repetição dos piores momentos dos filmes de terror de antigamente derrubam, como um frágil castelo de cartas, tudo o que a produção tinha a nos oferecer. Um Buddi defeituoso em um filme repleto de defeitos.
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