Crítica: Entre o Desejo e a Morte (Til Death Do Us Part)
Já tinha algumas semanas que a Netflix não lançava uma produção do gênero terror, ou ao menos que tivesse um flerte mais íntimo com o estilo. Sem grandes alardes, nesta quinta-feira o acervo passou a contar com uma obra original do streaming, vinda de Taiwan, composta por 7 episódios de cerca de 25 minutos cada, com histórias independentes entre si, tendo apenas como fio condutor os dois substantivos que marcam seu título traduzido. Apesar das diferenças narrativas entre suas histórias, o gênero também é o que aproxima cada um dos curta-metragens que formam essa série: contos sombrios que fazem seus personagens andarem no limiar Entre o Desejo e a Morte.
Seria impossível escrever uma resenha única, de modo geral, atendendo a todos os episódios da série. Sendo assim, serei obrigado a falar brevemente sobre cada qual. De início, temos uma história antiga e revisitada recentemente: lembra-se de “O Feitiço do Tempo” ou “A Morte Te Dá Parabéns 2“? O tema central desses dois filmes é o fato de o personagem estar preso ao mesmo dia, repetidas vezes. Nesse curta de abertura (“Atropelamento e Fuga”), acompanhamos dois personagens ligados por esse mesmo problema, de forma que, independente do que aconteça, um terá influência direta na vida do outro. E isso faz com que aquele momento se repita, exatamente da mesma maneira, fazendo o ciclo não ser quebrado, até que se descubra uma saída para isso. Apesar de uma forçada ou outra aqui e ali, a breve jornada consegue segurar o espectador e mantê-lo firme na tela.

Em seguida, passamos para um filme bem mais introspectivo e pouco auto-explicativo. Se você é um daqueles leitores que detestou “Vende-se Esta Casa” e “O Filho Protegido” pelo fato de não explicarem cada detalhezinho do filme, então este episódio não é para você. “Impecavelmente Limpo” nos situa no quarto estéril, branco e impecavelmente limpo de uma mulher, que precisa, a todo custo, manter o cômodo livre de toda e qualquer sujeira. Mas quando uma mancha na parede aparece e impede o objetivo da protagonista, uma batalha que a levará ao limite de seu ser é iniciada. Uma alegoria bastante interessante e com diversas camadas de profundidade acerca da natureza humana, desde o confinamento auto-imputado por aqueles que preferem se ver isolados das relações pessoais à escravidão da estética, passando ainda por temas como auto-aceitação, o curta merece um destaque e análise maiores.
A terceira parte conta com o título “Gato Grande”, associando comédia e suspense em uma história pouco inspirada: o relacionamento abusivo de marido e mulher que vai levando o homem ao seu limite da humilhação. Trata-se de uma relação tóxica, na qual o rapaz é um eterno apaixonado pela donzela, que o trai dia sim, dia também, esfregando-lhe na cara a sua impossibilidade de satisfazê-la. Da falta de ação que sempre esteve presente em sua vida, o homem decide confrontar a atitude de sua companheira mergulhando no que de mais cruel ele poderia imaginar: o desejo de antes passa a dar lugar a um novo e obscuro desejo. Apesar dos elementos que poderiam sugerir um conto mais interessante, a forma como a narrativa se desenvolve não nos permite a empatia por seus personagens, fazendo este episódio passar despercebido dentre os demais.

Da inconstância da obra como um todo até aqui, entramos no que de mais sutil, bonito e forte a produção tem a nos oferecer. “Animais Domésticos São Proibidos” é, de longe, o melhor conto de toda a série. Duas crianças vizinhas em um mesmo prédio, cujas posições sociais as separariam, não fosse a pureza e ingenuidade comum aos pequenos, começam a se relacionar quando decidem esconder um gato filhote abandonado na rua, para isso indo contra as regras do prédio. Porém, muito mais do que isso passamos a conhecer profundamente as relações familiares de cada um dos dois, as quais também os separam entre Céu e Inferno. Com um show espetacular de atuação da menina, que faz o papel de Chingching, esse episódio consegue falar sobre a pureza do amor incondicional incapaz de ser magoado ou quebrado, não importando as circunstâncias às quais fora submetido. Um título para se ver, rever e continuar sendo afetado pela sua força e poder, falando tão delicadamente sobre a brutalidade das circunstâncias.
Voltando à inconstância, “Paraíso” parece investir em um tom “Black Mirror”, sem a genialidade de Charlie Brooker. Comemorando 30 anos de casados, marido e mulher já mais velhos apenas revivem a falta de entendimento que parece pairar no relacionamento há anos e mais anos. Decididos a, após tanto tempo, vencer essas barreiras, entram em um resort que os faz retomar as afeições da juventude, quando se conheceram, revivendo momentos antigos de quando se apaixonaram um pelo outro. Mas, ao longo da jornada de reaproximação, descobrem que o local guarda segredos que atingem diretamente a vida presente de ambos. Apesar de um grande elemento e inteligente proposta de história, a narrativa busca um formato pouco sedutor para se desenvolver, deixando-nos a maior parte do tempo entediados com as sequências que se apresentam em nossa tela.

“Lily, Problemas no Login” retorna a um ponto mais alto da produção, surgindo como o segundo melhor título. Também enveredando por um tom um tanto mais “Black Mirror”, ainda sem a genialidade de Brooker, mas com mais segurança que o anterior, aqui acompanhamos a história de uma mulher insegura com sua aparência, sem grandes relações pessoais, nem mesmo no trabalho, que busca em seu perfil falso de rede social algum destaque, ainda que tão somente virtual. Mas o sucesso que fazia com stories, publicações e fotos que não eram dela passa a ser alvo de um usuário que começa a expor suas ações fake. Em paralelo, ela inicia no mundo real um relacionamento com um rapaz aparentemente muito interessado em sua companhia. No entanto, a insegurança da mulher solitária a tornará prisioneira de si e do desejo obscuro de alguém que não consegue se ver abandonado. Muito bem escrito e dirigido, o curta consegue discorrer sobre esses vários assuntos de forma convincente e contundente em seus 28 minutos.
“Túnel” surge para fechar a obra, tendendo mais para o lado positivo do que para o negativo no panorama geral da série. Igualmente pouco auto-explicativo, contemplamos a vida de um homem em liberdade condicional, que parece estar ligado sempre à perda da vida de quem está ao seu lado. Convivendo com os dramas e traumas de sua breve jornada, ele se relaciona com uma dançarina famosa que também é obrigada a aceitar a insustentável leveza de seu ser. Juntos tentam superar os machucados que a vida os causou, mas, mais uma vez, o lugar-comum de cada qual parece ser implacável, trazendo-os uma vez mais para os lugares mais escuros de suas existências. Introspectivo e propositalmente estranho, o curta envolve o espectador com a carga dramática de sua história pouco trivial.

Apesar do sobe e desce em uma montanha de sutilezas e cruezas, Entre o Desejo e a Morte não se apresenta como um todo que se destaque como obra única; mas ainda assim é responsável por conter muito provavelmente uma das coisas mais belas que você terá visto no streaming neste ano, até aqui. Se por algum motivo você não gostar da história do tão bem falado por mim “Animais Domésticos São Proibidos”, é impossível não se apaixonar pela atriz e personagem Chingching, com um trabalho memorável que permanecerá em seu imaginário eternamente.
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