Crítica: Mãe e Muito Mais (Otherhood)

Uma das grandes questões por trás da maternidade é o quanto ser mãe pode anular, socialmente falando, a mulher em diversas áreas da sua vida, com ou, pior, sem seu consentimento. Como se ter um filho ocupasse um espaço tão grande na sua vida que não sobrasse nenhum pra que você seja acima de tudo mulher, além de uma profissional, uma artista, ou qualquer outra coisa que te faça pertencer a algum lugar. A construção da figura maternal tradicional é horrivelmente tóxica para as mulheres justamente por essa abdicação e demanda incondicional pra com um ser. Acredito que estejamos no caminho de mudar isso, mas ainda há muitas permanências a serem questionadas nesse sentido. E uma delas é, definitivamente, o perigoso discurso de que “ter um filho dá sentido pra vida de uma mulher”.

A princípio posso ser mal interpretada com tudo que eu disse, mas esclareço: nada tenho contra a escolha de ser mãe – inclusive tenha admiração e respeito por tal. Mas há de se questionar sim a afirmação de que um serzinho que você gera carrega a responsabilidade – e, por que não dizer, fardo – de te fazer completa ou coisa do tipo. É injusto com as duas partes e a longo prazo muito mais com a mãe que, uma vez tendo seu filho criado por completo pro mundo, se sente perdida e até mesmo “abandonada”. É disso que Mãe e Muito Mais fala, de maneira leve e cômica, a quem disposto está a fazer essa leitura: da maternidade (motherhood, em inglês) que, construída dessa forma, está fadada a se tornar “otherhood” (um neologismo que dá título ao filme em inglês e que faz menção a esse espaço lugar-nenhum pós maternidade).

Gillian, Carol e Helen

É claro que pra provar seu ponto a produção traz uma marca deveras hollywoodiana: o exagero. De um lado temos mães suburbanas de classe média que não recebem nem “feliz dia das mães” dos filhos, que moram em Nova Iorque e têm suas vidas independentes há anos. De outro, temos os filhos, que recebem uma verdadeira invasão a domicílio de suas mães que, fartas da negligência mas também inflamadas pela crença de que eles têm de ser filhos tradicionais pra sempre, se sentem no direito de passar uma semana na casa das crias sem aviso prévio a fim de reestabelecerem a relação. Não preciso apontar onde estão os exageros, preciso?

Depois da gota d’água do centésimo dia das mães em branco, as amigas Carol (perfeita Angela Bassett), Gillian (maravilhosa Patricia Arquette) e Helen (diva Felicity Huffman) decidem “visitar” a casa de cada um dos filhos em NY. Não se sabe muito de como foi a criação de cada um deles, mas isso não é relevante para aquela lógica, afinal, “mãe é mãe” (o papo do amor incondicional obrigatório e tudo mais…). Ao chegarem a seus destinos, as mães lidam com “mais” frustração: não são recebidas com flores e fogos de artifício, mas sim de maneira surpresa e corriqueira com filhos adultos tendo rotinas de adulto. O sentimento de negação materna vai se inflamando e as três partilham desse mesmo ponto de vista: de que seus filhos estão em dívida emocional com elas.

Mamãe chegou!

No entanto, percebe-se que os filhos não são modelos de ingratidão que maltratam as mães ou qualquer coisa do tipo; eles simplesmente têm suas vidas. O que fica evidente aqui, e para o próprio grupo de amigas também ao longo do filme, é que ELAS precisam fazer o mesmo; e não por vingança ou raiva, mas por ser o curso natural da vida. Ou o que acho que deveria ser, por ser o mais saudável. A produção trata de passar essa mensagem, a la Hollywood é claro: muitas cenas de “mães dando o troco” nos filhos ao saírem por aí fazendo farra e dos filhos, que por sua vez também são agarrados à um papel tradicional de mãe, ficando loucos ao verem suas mães atuando como algo que não… mães.

Ou seja: o filme é um belo convite pra reavaliar os papeis familiares, viu? Porque assim como os filhos têm o direito de seguirem com sua vida, as mães também têm – e devem! E isso não entra em choque com o amor que ambos têm um pelo outro (e não vou nem entrar aqui que esse amor não PRECISA existir, tá… por que não é o caso no filme). A tal “otherhood” não deve ser um cruel abismo sem escapatória da solidão e tristeza. De tanto tempo olhando só pra fora, mães podem cair na enrascada de não conseguir olhar pra dentro sem medo, insegurança ou desespero, e é preciso falar disso. Afinal, há muito mais na vida do que bebês, casamento e esses caminhos tradicionais – que podem levar a felicidade sim, mas que estão longe de ser os únicos.

Girls’ night out: (mais que) necessário!

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