Crítica: It: Capítulo Dois (It Chapter Two)
Diferente de seu original, It: A Coisa e o novo It: Capítulo Dois são dois filmes separados em narrativa e data de produção. Pela comparação que fizemos, quando do lançamento do primeiro capítulo do remake (em nosso RPR), a obra de Andy Muschietti não pareceu limitada por seu predecessor, criando um modelo diferente de abordagem. Se no antigo as histórias de passado e presente de seus personagens aconteciam de maneira paralela, fazendo-nos conhecer o que ocorrera na medida em que contemplávamos o que se desenvolvia diante deles; no It atual tivemos um filme inteiro para aprofundar os protagonistas em seus primeiros contatos com o detestável palhaço Pennywise, bem como em seus medos e dramas pessoais, que alimentavam o ser hediondo. No Capítulo Dois, o foco permaneceu todo no retorno do ser abjeto, 27 anos depois: o reencontro dos amigos buscando vencer o antagonista.
O hiato de 27 anos de Pennywise é completado e ele retorna à cidade de Derry para continuar nos seus ataques, alimentando-se do medo e da carne humanos. Isso faz com que Mike (por Isaiah Mustafa), o único do grupo a permanecer na cidade, relembre a cada um dos seus amigos a promessa feita há quase três décadas de se reunirem para encarar, uma vez mais, o grande algoz de suas vidas. Acontece que para todos, por terem se distanciado daquele lugarejo, as memórias são nebulosas, quase como algo que ocorrera em outra vida. Mas para Mike tudo é tão claro como as lembranças de ontem, revividas por ele diariamente. Respeitando o pacto realizado quando meninos, todos se reencontram na pequena cidade, onde os sabores amargos da infância começam a ser reavivados em seus paladares de adultos. O novo contexto de revisitações os reduz às mesmas crianças de antes. Características de fraqueza já superadas voltam para diminuir a segurança dos personagens.

Se o primeiro capítulo não foi tão assustador, talvez por ter focado no olhar da criança, o segundo filme, apesar do olhar de adulto mesclado pela sua infância, não é lá tão aterrorizante também. Mas a proposta aqui é outra: o terror sugerido não é aquele que se aproxima do real, como em filmes de possessões espirituais ou aparições; mas mergulhando em um quê de fantasia, o horror buscado é uma releitura dos medos que temos mais latentes e que tentamos, a todo custo, suprimir dentro de cada um de nós. E é nesse instante que esse medo, tão comprimido em nosso ser, começa a se unir com o que somos, muitas vezes fazendo-nos propositalmente – ainda que de forma inconsciente – embarcar nele dia após dia. Beverly (pela perfeição encarnada Jessica Chastain), que sofria abusos psicológicos, emocionais e físicos de seu pai, é casada com um homem que abusa dela igualmente, em um relacionamento tão tóxico quanto. As neuroses, fraquezas, os traumas permanecem guardados dentro de cada um. Não superados, mas guardados. De modo que, no menor golpe de azar, tudo vem à tona. Esse é o papel principal de Pennywise, o palhaço ridículo: fazer transbordar cada um em seus medos mais intensos. Pennywise não ataca por si só, como uma besta inumana e descontrolada; ele trabalha em cima das frustrações do indivíduo, sendo tão somente a ilustração concreta do que tendemos a realizar a nós mesmos. Todos temos um Pennywise interno, pronto para nos fazer flutuar também.
O longo filme (2h49min) não é arrastado, não peca na narrativa, nem no aprofundamento de seus personagens. Por vezes, é quase impossível eleger o principal, mas o posto fica com Beverly e Bill (por James McAvoy). Assim, Andy consegue dar atenção a cada um deles, separando um momento da história para falar mais sobre cada qual. A tensão criada na costura dos protagonistas também é um dos pontos altos da direção de Muschietti, que traz cenas muito inteligentes, conseguindo equilibrar sua proposta cinematográfica (em positiva extravagância) com as sensações que o espectador deve experimentar. Até mesmo em sequências de coadjuvantes/figurantes o preciosismo é tal que uma relação consegue ser criada imediatamente entre o personagem e quem assiste. É impossível não se dobrar ao breve drama da menina solitária por causa de uma marca de nascença no rosto e em como o palhaço vil se utiliza dessa fraqueza para se aproximar, ficar ao derredor como leão e, então, atingir sorrateira e fatalmente sua presa. A construção do universo em It é tão sólida que os acontecimentos narrados partilham de uma profundidade que nos empurra para fora do meramente fantasioso e nos faz refletir concretamente sobre o que somos para nós mesmos. Nem mesmo uma leve forçada na conclusão – apesar de uma abordagem bem sincera e bonita – é capaz de nos tirar do envolvimento proposto e alcançado pelo diretor.

Flutuando por entre universos infantis, com tons de amadurecimento, It: Capítulo Dois é uma jornada pelo terror fantástico que nossa imaginação é capaz de produzir, tendo como alvo uma pessoa – e uma tão somente: si próprio. O palhaço detestável, que seria uma figura de alegrias (não para mim; nunca para mim) toma a forma de um monstro devorador (o devorador de mundos, como ele se autodenomina), tal qual nossos devaneios, que poderiam nos levar para os lugares mais belos limitados apenas pela nossa criatividade, mas que insistem em nos tragar para os lugares mais escuros de nossas almas. No bueiro escondido de nossa essência, dois olhos brilhantes de um Pennywise estão a nos convidar para flutuar.
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