Crítica: Yesterday

Escrevo a um metro e trinta e cinco centímetros do carpete do meu escritório. As teclas flutuam como se não houvesse gravidade e morro de medo de não reuni-las sobre meu notebook, o que me impediria de expressar meu sentimento. Sempre insisti na crença de que Cinema não é para se ver, mas se deixar levitar e sentir o que a obra tem a nos elevar. Num esforço sobre-humano, consigo baixar a bola e dispor finalmente as ditas letrinhas lado a lado para traduzir o blend de sensações e emoções que o filme a que acabei de assistir na telona de um cinema me serviu: Yesterday é de tirar meus pés do chão.

Não que eu seja um beatlemaníaco raiz (sou um privilegiado, ouvi os caras lançarem o primeiro compacto Love me Do a caminho do colégio, o mesmo em que fui barrado por um inspetor por usar o cabelo acima da orelha); não que eu seja um facinho que se deixa seduzir por filmes de pura emoção, mas tenho a responsabilidade de ser um agradecido escriba deste site que me acolhe e tentar deitar palavras sinceras e equilibradas sobre uma obra estreante para o qual fui honrosamente convidado a redigir minhas impressões.

Primeiro, vamos deixar de lado trilha sonora composta por um certo grupo de quarto rapazes transgressores, que, em apenas 9 anos, mudaram os rumos da música, do comportamento e consolidaram o conceito que se desenhava desde os primeiros acordes de rock nos anos 50: a ideia de que juventude não é um cursinho preparatório de vestibular para a vida adulta, mas um estado de espírito próprio, efervescente e contagiante, com uma personalidade respeitável, uma potência de influências para o mundo.

É difícil, mas vamos abstrair que Yesterday não tenha uma trilha sonora que nos coloca no colo, e admitir que, por si só, é uma história original de Jack Barth que encanta do começo ao fim. Jack Malik (Himesh Patel) é um músico mal sucedido, cujo raro estímulo recebe de sua amiga de infância Ellie (Lily James), que se intitula sua agente, empresária, essas coisas. De fracasso em fracasso, Jack vai acumulando frustrações até que algo extraordinário acontece, um recurso de roteiro perfeito para disparar uma fábula. Gosto quando a lógica, o tempo e a realidade ordinária são desafiados, até me lembrei de “O Dia da Marmota”, “De Volta Para o Futuro”, “Feitiço de Áquila” e Hitler pegando fogo em “Bastardos Inglórios”. Sim, a transgressão e a subversão me atraem, mas é a liberdade que me fascina na ficção.

O gatilho fantástico se dá quando o planeta sofre um apagão de 12 segundos e parte da memória da Humanidade é deletada. Na esteira do breve caos, Jack sofre um acidente, perde dentes e os sentidos, e quando volta se dá conta de que o mundo havia mudado. Coube ao destino escolhê-lo como depositário do acervo de toda obra dos Beatles, cuja existência é deletada da lembrança dos viventes. Até o Google os ignora.  Acompanha a lista dos apagados o cigarro, a Coca-Cola, Harry Potter, mas nada tão grave quanto a borracha implacável passada nos rapazes de Liverpool. Só Jack sabia que eles haviam existido e começa a extrair suas canções antológicas dos labirintos da sua memória intacta, e cada descoberta provoca estranheza a quem se dispõe a ouvi-lo e encantamento com um repertório incompatível com as crias de um músico até então medíocre e desconhecido. Tais descobertas foram deliciosamente traduzidas pelo talento do roteirista Richard Curtis e do diretor Danny Boyle (o mesmo que assina o carismático “Quem Quer ser Um Milionário”, Oscar 2009 de Melhor Filme e Melhor Direção, entre outras estatuetas). Registre-se com a alma em festa o momento em que Eleanor Rigby (uma canção deslumbrante, um conto poético, a literatura musicada) brota no seu violão, entre cenas do padre costurando meias e a noiva catando arroz no chão de uma igreja onde aconteceu um casamento. Enfim, quem traz Eleanor nas veias sentiu o sangue correr mais apressado.

A cada obra dos Beatles que sai de sua voz, do seu piano e do seu violão – a essa altura promovido a guitarra -, um acontecimento. Jack é convidado por Ed Sheeran (o próprio) a abrir seu show em Moscou, quando surpreende a plateia com o apropriado e perfeito Back In te U.S.S.R. Perplexidade total. A partir deste divisor de águas, conquista fama, notoriedade, a ponto de se tornar um pop star dos quatro cantos do mundo, tal como aconteceu com John, Paul, George e Ringo. Para apimentar a trama, Jack é perseguido pelo pavor de sua impostura ser descoberta, delírios quando o humor inglês arranca risos de quem já está embalado no colo do filme.

E a amiga de infância, ex-agente, ex-empresária e eterna sei lá o quê Ellie? Ah, aí já é spoiler e mais não digo. A não ser loas à edição, passeios de câmera, cenas majestosas e intimistas, pitadas de mistério, timing, figurino, direção de arte, tudo sem tirar nem pôr, e, evidente, o encaixe perfeito da trilha, que dispensa comentários, com o roteiro. Palmas e uhus para os coadjuvantes figuraças Kate MacKinnon, Joel Fry e Robert Carlyle, cuja participação faz o cinema chapar.

À luz da paranoia vigente, de que estaríamos à beira de um real apagão civilizatório e cultural, nas esferas municipal, estadual, federal e planetária, quando nem talento, ciência, conhecimento, pensamento, cinema, poesia e muito menos os Beatles teriam vez, Yesterday pode ser percebido como um filme assustador, disfarçando com graça e leveza um pessimismo subliminar. Mas não é meu caso defini-lo assim. O filme é uma delícia despretensiosa, uma fábula de encanto, sutileza e fantasia, sem se propor a uma obra prima, revolucionária, que muda caminhos do cinema. Há quem possa considerar uma comédia romântica adocicada, sem profundidade intelectual. É possível que caiba este olhar; a humanidade é diversa, a tribo dos cinéfilos idem.

 

Mas para os que se entregam ao cinema sem cordéis e lentes reflexivas, para os que compram ingresso e pipoca pelo simples prazer de se deixar levar, basta se aconchegar na poltrona com olhos, ouvidos, mentes e corações abertos.

E if you want some fun, let it be.

Nenhum comentário

Tecnologia do Blogger.