Garimpo Netflix #38

Garimpo é um quadro do MetaFictions no qual indicamos toda semana 3 bons títulos disponíveis nas maiores plataformas de streaming. Clique aqui para conferir os anteriores.


O que nos permite viver em sociedade, tentando minimamente, e da maneira mais frágil possível, minimizar o caos que advém da natureza humana é a existência do pacto social. A partir dele, definimos em conjunto (mas quase ninguém tendo poder de fala para esta definição) as regras básicas para a convivência em comunidade, de tal forma que a quebra da estrutura primordial seja passível de penalidades. Assim sendo, o medo de sofrer um desses castigos faz o ser humano tentar (apesar de muitas vezes não conseguir) andar na linha estreita orientada pela lei.

Mas para além da lei propriamente dita, há ainda aqueles modelos que, apesar de não juridicamente formalizados, funcionam como tal. Estude, trabalhe, case, monte uma família, compre uma casa, viaje. A menor sugestão fora desse padrão automaticamente coloca o indivíduo para fora do paradigma aceito e engessado para cada um de nós. Como se uma função algorítmica, somos criados a caminhar nessa programação pré-estabelecida que filtra nossas escolhas e controla o arbítrio.

Garimpo Netflix de hoje traz três filmes completamente diferentes entre si, mas que, de alguma forma, trazem um modelo de vida que se entende fora de padrões razoáveis previamente formalizados pela sociedade.


Assunto de Família (Manbiki kazoku), de 2018, dirigido por Hirokazu Koreeda

Hirokazu Koreeda é conhecido por sua sensibilidade e naturalismo na hora de filmar. Lembro-me ainda da primeira vez em que vi seu brilhante “Ninguém Pode Saber”, retratando uma forma de vida pouco trivial de algumas crianças. Em seu novo Assunto de Família, ele parece revisitar muitos dos territórios pelos quais passeou no título citado. Colocando-nos dentro de um núcleo familiar nada padronizado, seguimos a história dos Shibata, que tentam viver cada dia em meio aos seus trabalhos, pequenos furtos para prover a alimentação diária e a união noturna entre os familiares.

Esta família, porém, não compreende o padrão esperado que o conceito imediatamente sugere. Formada a partir do abandono, os membros se unem pelo sentimento que vão construindo entre si. Assim se constituindo, “adotam” (mas não na legalidade) uma pequena menina, Yuri, aparentemente destratada pelos seus progenitores. Em um ambiente pequeno e bagunçado, as relações emocionais vão se fazendo presentes e os sentimentos mais verdadeiros afloram e desabrocham.

Um conto simples, delicado e que questiona os verdadeiros e inquebráveis laços pessoais, uma poesia ímpar ritmada pelos seus silêncios, contemplações e gestos plenos em expressão. Vencedor da Palma de Ouro em 2018, essa obra figura no que de mais rico você poderá encontrar em todo o acervo da Netflix.

– 12 Horas para Sobreviver: O Ano da Eleição (The Purge: Election Year), de 2016, dirigido por James DeMonaco

A indicação desse filme pode parecer “chover no molhado”, em especial porque há pouco indiquei o primeiro da franquia em nosso Garimpo Netflix: Sobrevivência. No entanto, muito embora mantenha a jogada principal da trama e da narrativa (isto é, as 12 horas anuais que os norte-americanos têm para promover todo o tipo de crime, já que esta abertura da lei diminui a criminalidade ao longo do restante do ano), a abordagem dessa terceira parte da série de filmes é bastante crítica e mexe com assuntos urgentes da política americana e internacional. Nela, acompanhamos as 12 horas da senadora Charlie Roan (Elizabeth Mitchell), candidata completamente contrária à medida, cujo plano de governo é extinguir a tal lei. Por seu posicionamento diante da máquina de lucro e extermínio dos mais pobres (visto que eles são os que menos recursos têm para se proteger), a personagem se torna alvo dos grupos do poder, desejosos por manter a nova tradição americana. Nessas 12 horas de puro terror e tensão, seu guarda pessoal Leo Barnes (Frank Grillo) irá tentar a todo custo garantir a sobrevivência da senadora.

Algumas situações buscam soluções narrativas semelhantes as que já vimos nos episódios predecessores da franquia, mas a forma como James DeMonaco consegue discutir embates da nova política norte-americana da vida real, a partir de seu universo ficcional, é invejável. Mais do que outro filme de fuga e sobrevivência, este se destaca por seu papel crítico em meio a um mundo cada vez mais intolerante e movido a ódio, o qual busca a todo custo bodes expiatórios para justificativas simples e simplórias.

Quando a lei passa a legalizar o que sempre punira, o pacto social fraqueja e a sociedade começa a colapsar.

Capitão Fantástico (Captain Fantastic), de 2016, dirigido por Matt Ross

Algumas vez já se pegou pensando em o quanto o mundo está devastado, desde a moralidade mais simples das pessoas até os grandes confrontos de super-potências, que geram pavor e terror em tudo a sua volta? Como se vivendo balançando no fio da navalha acima de um abismo pronto para tragá-lo em sua escuridão. Já vislumbrou se isolar de tudo e todos, mantendo ao seu lado apenas aqueles que ama, criando um mundo perfeito à parte dos demais? Capitão Fantástico traz exatamente essa ideia.

No meio de uma floresta, um pai convicto de seus ideais cria 6 filhos em uma proposta intelectual e física de força. Ensinando questões humanas e técnicas, fortalecendo o corpo e promovendo uma noção de comunidade muito bem amarrada a partir dos laços familiares, eles vivem isolados do contato social trivial. Em uma espécia de autossubsistência, não necessitam de nada que não esteja ao alcance deles. Porém, um acontecimento interno os obriga a deixar, por um momento, esse paraíso produzido para, pela primeira vez em muito tempo, voltar a lidar e agir em sociedade tal qual a conhecemos. Agora, os conflitos que surgirão da exposição aos seus filhos a essas novas regras sociais fará com que questionamentos e relacionamentos sejam reavaliados diariamente.

Um filme sobretudo de reflexão e sensibilidade, que toca em pontos deveras frágeis de nosso dia-a-dia. O isolamento, vislumbrando a autoproteção, associado ao desprezo pelos rumos que a sociedade insiste em tomar, seria a resposta para se evitar os traumas que o ser humano é capaz de imputar a si próprio? Ou isso geraria, tão somente, um outro tipo de trauma a quem estiver condicionado a este novo padrão?

Leia a resenha completa escrita por Larissa Moreno aqui.

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