Crítica: Coringa (Joker)
Por volta das dez horas da noite, eu saía da sessão de Coringa, em plena quarta-feira, dia 2 de outubro de 2019. Minha cabeça não parava, não tinha certeza do que sentir. Descia as escadas rolantes quase sem propósito e o que eu tinha visto ficava em constante visualização. Até que eu chego ao último piso do shopping e sou levado diretamente de volta para a sala do cinema, completamente apavorado e com um assombro em minha nuca que não parou. Isso durou um milésimo de segundo, eu voltei para a realidade e notei que era só um pai brincando com o filho, que caía na gargalhada.
Eu fiquei com essa situação em mente e, para ser sincero, não a lembro de forma agradável. Eu tomei um susto, um susto que me apavorou, que mexeu comigo, que fez meu estômago revirar e, depois de acalmar os nervos, me fez pensar. A risada da criança me fez perceber o que eu, verdadeiramente, senti acerca do filme, o que eu realmente vi.
Um filme é verdadeiramente bom quando ele o acompanha após a visualização. Quando ele vai contigo para casa, quando ele deita com você em sua cama, quando ele te impede de dormir. Seja um filme de comédia que te faz rir de piadas, apesar delas já terem sido contadas há algumas horas. Seja um filme de drama que te faz derramar lágrimas mesmo após a notícia ruim ter sido contada. Seja um filme destruidor que te machuca mesmo após os socos já terem sido desferidos.
Coringa me machucou e continua me machucando.
O arqui-inimigo do Batman ganha um tratamento jamais visto em qualquer mídia. Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um cidadão da suja, corrupta e caótica Gotham. Ele deseja se tornar um comediante, contudo ele vive em Gotham.
“Basta ter um dia ruim para transformar o mais são dos homens em um lunático. É a essa distância que o mundo está de mim, apenas um dia ruim.” A frase do lendário quadrinho “A Piada Mortal”, de Alan Moore, ecoa pelo filme dirigido por Todd Philips. O diretor nos mostra, com um apanhado de momentos, o quanto Gotham quer que Arthur vire o Coringa. Aqui, o Coringa tem a mesma origem do Batman, ambos foram criados por Gotham. O desprezo diário que o protagonista recebe chega a ser cômico, tudo o que poderia dar errado deu e, infelizmente, Arthur era extremamente frágil.
Joaquin Phoenix entendeu a capacidade que o mundo tem em destronar uma pessoa, que já não tem sustento, nem físico, muito menos mental. Ele soube ser alguém que perde todo dia, mesmo injustamente, que apanha toda hora. Phoenix entrega um trabalho que coloca uma quantidade enorme poder do filme em seu colo. E, ele ainda vai além, trazendo momentos que faz com que sintamos pena dele. Esse conflito emocional está sussurrando em nosso ouvido durante todo filme. Ele sofre tanto que faz com que simpatizemos com ele, contudo não pode ser uma justificativa para seus atos. Ele é uma pessoa frágil, que sofreu demais, mas usa essa dor e elimina-a de forma hostil, impedindo que tenhamos verdadeiramente pena dele. Joaquin me fez tremer de nervoso em diversos momentos, bastava ele andar em um corredor que eu já fraquejava e temia o que poderia vir.
As risadas do personagem ecoam pela sua alma. Uma risada fina te deixa desconfortável. Uma risada mais grossa te deixa com medo. Elas vem em vários momentos e em praticamente todos trazem problemas para Arthur.
Agregado ao trabalho do ator protagonista, Todd Philips conduz o barco com maestria. O diretor soube combinar os elementos de forma harmônica, a começar pela trilha sonora. A música do filme, que reverbera em diversos momentos, nos assombra como um monstro que mostra seu rosto de vez em quando. Quando a faixa principal da trilha chega, ficamos ansiosos e nervosos. Phoenix andando em um corredor já era assustador, quando sobe a música, a coisa muda de figura e se eleva a um nível arrepiante. Hildur Guonadóttir, a compositora, fez algo aterrorizador.
A fotografia é forte, densa e linda. O esquema de cores do filme foi bastante trabalhado. Ela passa a ideia de uma Gotham imunda e nem um pouco agradável. O único momento de cor é o programa de televisão apresentado por Murray Franklin (Robert DeNiro). A luz também sabe contrastar os momentos tristes e depressivos de Arthur com os momentos vitoriosos e poderosos do Coringa.
Philips, com seu histórico de comédias (é o realizador de “Se Beber Não Case”), fez um filme único, com sua própria voz, com seu próprio tom, com suas próprias ferramentas e com sua própria mensagem. O propósito do filme está longe de incitar a violência, construindo criminosos e assassinos. O filme trata sobre a falta de carinho com o próximo, com a falta de cuidado. Um monstro só é um monstro se ele for chamado de monstro. E ele foi chamado e, mais que isso, foi desumanizado.
Coringa me fez tremer, me assustou e me incomodou. No final das contas, acho que esse era o propósito. Fazer com que nós, os espectadores, pensemos sobre até onde uma pessoa tão quebrada e tão mal-tratada pode chegar e o que pode fazer. No final do filme, uma citação me veio à mente: “Meu nome é Ozymandias, rei dos reis: Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!”. E eu contemplei… E a cidade de Gotham se desesperou.
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