Crítica: Azougue Nazaré
No interior de Pernambuco, a pequena cidade de Nazaré da Mata é palco de surreais acontecimentos. Nos imensos canaviais, um pai de santo executa um ritual com cinco caboclos de lança do Maracatu local, o Cambinda. Misteriosamente, eles desaparecem. Ao mesmo tempo, Catita (Valmir do Côco) vive um dilema dentro de casa. Sua esposa, Darlene (Joana Gatis), ordena que ele deixe o seu papel de destaque no maracatu e, assim como ela, se converta à igreja evangélica do Pastor Barachinha (Mestre Barachinha), um ex mestre do maracatu que deseja expulsar o demônio da cidade com a extinção de tal tradição. A crise doméstica se aprofunda quando a esposa e o pastor apresentam ao marido uma peculiar “missão divina” (incrivelmente inspirada num caso real que, se o leitor Metafictions quiser um spoiler, pode ser visto nesta reportagem do Fantástico).
É nessa pegada meio David Lynch encontra Buñuel para tomar uma cachacinha com Glauber Rocha que se desenrola a narrativa de Azougue Nazaré, estreia de Tiago Melo, cuja carreira como produtor conta com”Bacurau” e “Boi Neon”, na direção de longas Apesar do resultado final soar nebuloso em alguns aspectos, principalmente na condução do episódio sobrenatural, o filme se revela uma obra extremamente sensível e alegre, que desvela um Brasil bonito e rico, embora longe (e, talvez, por isso, tão interessante) dos desejos e do tédio dos discursos oficiais e bem-comportados.
Nessa manifestação de brasilidade quase “macunaímica”, Tiago Melo apresenta uma Nazaré da Mata que é uma síntese do país no que ele tem de mais genuíno. A começar pelo elenco. Multiétnico, miscigenado, sincrético e multifacetado, a opção de colocar atores não-profissionais junto a profissionais, em situações próximas de suas realidades, faz com que o elenco convença justamente por deixar à mostra os recursos de quem ainda tateia o ofício de atuar.
As cenas nas quais mestres do maracatu se desafiam em rimas enchem os ouvidos de sons que se engendram em Brasil, até mesmo quando os duelos são feitos no “zapzap”. Os conflitos das igrejas neopentecostais com as tradições populares e religiões de raiz afro são lapidares para se pensar o presente dessa pátria.
Ainda que o roteiro careça de polidez em seu desenvolvimento, os toques de realismo fantástico colaboram para o estabelecimento de um diálogo com uma essência tão presente nas narrativas latino-americanas. Além disso, Azougue Nazaré abraça a sexualidade como manifestação de liberdade identitária. As falas, as situações, a diegese, tudo é erótico no sentido batailleano do termo, na “aprovação da vida até na morte” e na ousadia libertária das transgressões sobre os interditos. O filme é um filme colorido.
Cor que ganha uma força tremenda na maravilhosa fotografia de Gustavo Pessoa. Imprimindo magia à realidade, ela enche a tela de vibração. As cenas no canavial e as que mostram os folguedos do Maracatu são exercícios estéticos muito bem urdidos. A direção de arte e os figurinos acompanham essa vibração e até os movimentos de câmera parecem dançar no ritmo do maracatu.
Azougue Nazaré é vibrante. É nosso. E mostra que o Maracatu, como bem disse o grande Chico Science, pesa uma tonelada. Porque “sempre foi atômico, agora biônico, eletro-sansônico alterando as batidas no azougue pesado em ritmo crônico”. Que os mestres continuem rimando e que o nosso cinema continue brasileiro.
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