Crítica: Doutor Sono (Doctor Sleep)

Mike Flanagan tem se tornado um conhecido nosso que, volta e meia, retorna em nossas críticas.  Autor de obras como “Before I Wake”, “Ouija: Origin of Evil”, “Jogo Perigoso” e “A Maldição da Residência Hill“, seu apetite por terror tem se mostrado cada vez mais marcante em sua filmografia. Não pela primeira vez, o novo lançamento do diretor para as salas de cinema é uma adaptação de Stephen King. Porém, muito mais do que isso, é uma continuação daquele que se sustenta (e dificilmente perderá este posto) como o melhor filme de terror da História do Cinema. “O Iluminado” de Stanley Kubrick é daqueles filmes que se enquadram definitivamente como uma obra de Arte, que resiste ao tempo, que gera reverências e referências até o presente momento (e certamente assim continuará, estando na ponta do nosso Top 10 – Filmes de Terror). Portanto, pelo simples fato de revisitar tão absoluta obra-prima, Mike Flanagan obrigatoriamente escolheu ser assombrado por fantasmas do passado que são, de fato, os mais presentes no presente.

O pequeno menino Dan Torrance, filho do insano escritor wannabe eternizado pelo fantasmagórico Jack Nicholson, é obrigado a reviver os momentos mais traumáticos de sua existência anos e anos após. Agora adulto, Dan (pelo sempre ótimo Ewan McGregor) tem que se equilibrar no fio da navalha do alcoolismo – do qual, a todo custo, tenta se afastar – e das lembranças que o afundaram em uma vida de vazios e vícios. Seu dom – ou punição – de se comunicar com almas encarnadas ou não permanece ativo e as drogas surgem em sua vida como escape do universo de medo que o acompanha desde a infância. Com aquela história, em seus dias mais antigos, era evidente que Dan se tornasse um adulto totalmente “ferrado” como este. Suas lembranças (recriadas por Mike Flanagan no mais próximo possível do “O Iluminado” de Kubrick, tendo até a atriz que faz sua mãe imitando a atuação da protagonista original) não o abandonam jamais e o passado se torna mais presente quando ele começa a se comunicar com uma garota, Abra (Kyliegh Curran), quem tem um dom similar – ou até mais poderoso – que o seu. À medida em que a menina pede ajuda, ao conseguir “testemunhar” de maneira psíquica sequestros e sacrifícios de crianças por um grupo de pessoas misteriosas, ela se torna alvo destes mesmos criminosos sobrenaturais.

Abra e Rose: essência e devoradora.

Ocorre que eles são devoradores de almas e conseguem resistir ao tempo se alimentando de pessoas como Dan e Abra. Logo, um invadirá o caminho do outro em busca de sobrevivência. Abra e Dan se unem para contra-atacar as investidas desses famintos de essência pura, liderados por Rose, the Hat (pela estonteante Rebecca Ferguson). Portanto, a narrativa de Flanagan nos coloca em três frentes de personagens/história: os dramas revividos de Dan, a descoberta de si mesma por parte de Abra e a equipe (tirada da cartola na história geral proposta) de devoradores. O fato é que as cerca de 2 horas e meia de conto, ao se dissolverem entre essas três partes, não parece focar muito em momentos tão profundos de cada qual, permanecendo muito mais na superfície do que mergulhando no que cada construção dessas teria a oferecer. Meio que perdido entre tantas propostas, o filme, em determinado momento, tem até uma cena de bangue-bangue entre os envolvidos. Por vezes, essa é a tônica da obra: situações pouco compatíveis com aquilo que se pensava no seu horizonte próprio de expectativas. Com passagens pouco inspiradas, o que a produção mais tem a oferecer é um saudosismo de “O Iluminado”, fazendo-nos saborear um pouco de seus antigos personagens que ressurgem, à imagem e semelhança daqueles, em um esforço enorme de recriá-los da maneira mais precisa que der.

Na verdade, o único momento realmente firme da realização é a sequência de conclusão, quando os personagens se encontram no antigo hotel onde tudo acontecera. A sensação que temos é que parece que o filme foi feito para esta cena, para que Flanagan pudesse caminhar pelos longos corredores daquele cenário, pelo gélido labirinto com árvores longas e neve branca e pela sensação de que um filme como aquele talvez jamais seja feito uma outra vez. Andando pelas vias de Kubrick, Mike não bebe de sua água. O hotel, há anos abandonado, com suas paredes escuras e estrutura decadente, é a perfeita ilustração do que tem se tornado o Cinema de verdade. Como em um tour de uma casa assombrada, vamos desvendando a cada frame o quão assombrado está o atual Cinema, carecendo de verdadeiros significados, de incontrolável paixão e de marcante sinceridade. O entretenimento pelo entretenimento, tal qual o parque de diversões supracitado, tem feito se esvair do Cinema sua força inerente e para sempre resistente. Mas, assim como os fantasmas do passado, os gênios de antes ainda conseguem possuir pessoas de hoje que, igualmente, se tornam gênios, apesar de todo o esforço de um grupo que surge como devoradores de Arte. Talvez aí resida – ou é mera viagem minha! – a força e o real significado da obra de Flanagan. Talvez isso seja o seu grito pessoal de amor ao Cinema. Ou talvez tantos fantasmas já tenham me feito perder a razão, como um Torrance perdido em meio a tantas investidas desagradáveis.

O antigo hotel… o antigo.

Mas entre leituras possíveis ou insanidades assumidas, o que sobra de Doutor Sono é muito pouco. Funciona muito mais como registro e reverência do que provavelmente “O Iluminado” foi para este amante do terror do que como uma peça que em si se sustenta. Seu maior impacto no espectador é reviver nele o que de tão maravilhoso se guarda naquela horas de pura perfeição desenvolvidas décadas atrás em um filme marcante, com uma atuação dilacerante e uma direção impiedosamente fantástica. Elementos estes que, infelizmente, não se repetem em sua continuação cinematográfica.

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