Crítica: Meu Irmão (Mon frère)

“Vocês são o futuro da França”, diz um assistente social para um bando de menores infratores, em um reformatório, recebendo de volta gargalhadas de seu pequeno público. A inscrição de uma lei francesa de décadas atrás fecha o novo lançamento da Netflix: é dever do Estado proteger as crianças, especialmente os delinquentes. Em meio a uma França agitada, com conflitos sociais e sobretudo raciais mais aparentes do que nunca, Julien Abraham dirige um filme sensível, simples e poderoso. Meu Irmão visita os principais elementos pelos quais passa a região atualmente.

Teddy (por MHD) é um jovem negro sem passagem pela polícia, que adentra um reformatório acusado de ter tirado a vida do próprio pai. Em meio a diversos marginais, brancos e negros, ele terá que entender as regras legais do local, ao passo que deverá se adaptar ao modelo extraoficial regido pelos manda-chuvas detentos. Em paralelo, somos, aos poucos, apresentados ao seu drama familiar, a ausência de sua mãe (que fugira do relacionamento extremamente abusivo), abandonado-o e a seu irmão mais novo, Andy (Youssouf Gueye), à própria sorte. Sua vida no confinamento será abalada pela presença do infrator Enzo (Darren Muselet), loiro que se acha o gangster maioral, fazendo emergir na relação de todos ali a tensão racial.

Os escombros de alguém que tenta ser.

Apesar de não ser um delinquente de “carteirinha”, Teddy consegue se manter firme na sua armadura externa (tendo que se reconstruir a cada dia a partir dos fragmentos emocionais que sua família proporcionara) e consegue um fôlego maior quando Mo, um negro extremamente forte, se torna o mais novo membro do reformatório. Ele fará com que a tensão racial extrapole ao tomar o posto de maioral do loiro Enzo. No entanto, o diretor do filme consegue fugir de uma polarização das questões raciais ao colocar Teddy com uma ética e moral inabaláveis, fazendo-o próximo de seu antigo algoz, ao perceber as péssimas intenções do colega Mo. Dessa forma, Teddy vai revisitando seus dramas e traumas, enquanto tenta se manter são dentro de um ambiente negativo, que tem no trabalho excepcional dos assistentes sociais e psicólogos uma tentativa real de reconstrução daquelas personalidades.

Teddy surge como o diferente, aquele que está ali por um acaso e que não teve uma vida construída sobre crimes. Dos outros sabemos pouco, além de Enzo, quem guarda um histórico de violência. Em muito somos produtos de nosso meio e é extremamente difícil (mas não impossível) esperar candura de alguém que fora forjado em meio a porrada, drogas, prostituição e abusos. Não se cria alguém como um animal esperando que ele vire um lorde. Tampouco pode-se esperar que toda a experiência negativa seja esquecida diante do trabalho de uns poucos realmente interessados na mudança de caráter daqueles que foram largados há tempos. A obra nos coloca nesse limite de considerações, impedindo qualquer posicionamento generalizante e, portanto, vazio. Há muitas gradações entre os extremos branco e preto (em absolutamente tudo que esta frase possa remeter).

Extremos que se assemelham.

Muito da força da realização de Julien Abraham reside na poderosa atuação de MHD, que nos entrega olhares e expressões corporais que conseguem passar, por uma cena meramente contemplativa, toda a tensão, desagrado e angústia que um garoto naquela situação poderia guardar. Teddy é muito mais do que um personagem simples que está confinado pelo crime cometido. Ele é o construto de boa parte da população francesa de hoje; ele é o homem invisível, ou aquele que só é visto quando é necessário alguém para se culpar. O bode expiatório que deve ser sacrificado por um “bem maior”. Ainda que em posição igual, ele é o que passa por uma tentativa de submissão, mas que se mantém sóbrio, na linha, seguindo como deve. Ele é a fortaleza que guarda suas emoções para não explodir e não vestir a carapuça que a sociedade insiste que ele assuma. Teddy é a representação da força anônima que fora utilizada historicamente por aquele país e que agora, ao tentar emergir, sofre todo tipo de investida contrária, para que continue nos corredores de antes, aprisionados por grilhões pós-modernos que tentam esconder o quão arcaicos ainda são.

Muito mais do que o drama de um adolescente que, tentando proteger seus iguais, comete um possível crime e deve permanecer no reformatório, Meu Irmão é uma obra que toca em assuntos há muito urgentes e que parecem mais necessários do que nunca. A essência do que é viver está presente em cada diálogo, em cada sequência, em cada olhar. Não é uma representação só da França, não é uma breve discussão acerca das tensões raciais, tampouco uma denúncia às políticas locais. A obra é essencialmente sobre os lugares mais obscuros pelos quais um ser humano atravessa em sua vida e sua tentativa constante de se refazer a partir dos seus próprios escombros emocionais.

Ser.

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