Crítica: O Homem Sem Gravidade (L'uomo senza gravità)

Há alguns anos me deparei com um curta-metragem de destaque que descrevia uma sociedade apática com uma peculiaridade. As pessoas tinham gravidade reversa; elas não eram “empurradas” para o centro da Terra. Se soltas, levitavam para cima e para evitar isso calçavam botas pesadas de metal. Este filme, de título Sniffer, ganhou uma publicação em nosso CinePigmeu de tão tocante que são os temas pelos quais passeia. Nesta sexta-feira, o novo lançamento italiano da NetflixO Homem Sem Gravidade, traz a mesma alegoria (porém através de um único indivíduo), para tratar de outros assuntos.

Natalia (em atuação sensível de Michela Cescon) é uma jovem solteira grávida que vive com sua mãe. Ao ter seu filho, ela percebe de cara uma característica peculiar no menino: a gravidade não o afeta. Ele levita. E, para isso, Natalia readapta toda a sua casa e suas relações pessoais para conseguir tornar o mundo plausível para a pequena criança, fadada ao anonimato por conta de sua tradicionalista avó. Oscar (vivido em três momentos, sendo o principal deles atuado por Elio Germano) tem todo o amor da mãe e da avó, mas sente o vazio da falta das amizades que seu universo poderia trazer. Tudo muda quando conhece a pequena Agata (vivida em dois momentos, sendo o principal deles atuado por Silvia D’Amico), única pessoa fora da casa que conhecerá o seu segredo. Mas o perigo que pode resultar disso faz com que Natalia o afaste da única relação que o pequeno construíra.

O menino extraordinário que flutuava.

O filme viaja pelos principais momentos da vida de Oscar, quase como uma cinebiografia de alguém que jamais existiu. Ao longo das sequências, conhecemos seus dramas, seus sentimentos mais profundos, dos quais o mais rico e sublime é para com a sua mãe (obviamente, estamos a falar de uma produção italiana), seus desejos reprimidos e sua ambição por querer sair dos pequenos espaços aos quais fora confinado ao longo de sua vida. E, assim, decide se mostrar ao mundo como um “homem extraordinário”, pronto a compartilhar sua peculiaridade. A sociedade mundial, ávida pelo diferente, lota teatros para ver um simples gesto do “homem sem gravidade”. E, saindo de casa pela primeira vez para entrar nas relações mais cruas da sociedade catastrófica, Oscar se vê refém de contratos, falsidades, insignificâncias e vazios. Aquele vazio que sentia desde a infância agora é preenchido de forma incomparável, ao se ver só em meio a uma multidão de rostos estranhos que não querem nada dele além de pagar por algo que tem a oferecer, ainda que de forma momentânea. Ou a mera companhia daqueles que querem uma mordida de sua fama.

Utilizando-se de uma alegoria fantasiosa, O Homem Sem Gravidade fala acima de tudo acerca dos vazios da humanidade, da avidez, das relações meramente parasitárias entre os indivíduos. Fala sobre o amor sublime infantil, ainda que o mesmo seja moldado cruelmente pelas circunstâncias nada confortáveis imputadas pelas necessidades que se apresentam em nossa jornada mundana. Fala sobre o pertencimento; não importa o quanto somos jogados de um lado para o outro, há sempre um lugar que podemos chamar de “nosso”. Muitos são, portanto, os temas que o diretor Marco Bonfanti decide abordar. Quase de forma episódica, discorrendo sobre cada qual em momento oportuno da vida de Oscar, a produção parece um compilado dos momentos mais importantes na formação deste ser extraordinário. Em alguns momentos, a sensação de que a direção está flutuando entre as propostas pode sugerir algo de perdido, mas, analisando-se sutilmente, é quase uma alegoria fidedigna do que qualquer indivíduo está a passar.

O homem extraordinário que sentia.

A fantástica história de Oscar (que recebe o nome por sua mãe considerá-lo um filme americano encarnado) não busca alimentar o extraordinário, não cria uma fábula pouco crível ou um conto nada palpável. Pelo contrário, usar a alegoria de um homem anti-gravitacional é uma opção simples para levar ao seu público o que de mais extraordinário há na história daquele garoto: sua convicção e o respeito pelo seu próprio sentimento. Ingênuo ou puro, Oscar foi aquele que jamais sucumbiu ao cinismo, à falsidade ou ao vazio inerentes a quase todo e qualquer ser humano que está a andar pelas vias diariamente de nossas cidades. E, assim, tão sincero quanto o seu sentimento, uma cena significativa traz um dos principais ensinamentos que Oscar poderia nos dar em relação a esta sociedade de parasitas: “vafanculo tutti voi!” (em tradução livre: “vão todos tomar no cu!”).

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