Crítica: O Irlandês (The Irishman)
Imagine uma banda com Paul MacCartney, Jimmy Hendrix e Jimmy Page. Ou John Lennon, Bob Dylan e Cole Porter criando letras em trio. Ou uma canção de Chico, Caetano e Gil. Ou Tom Jobim, Ira Gershwin e Leonard Bernstein compondo uma mesma sinfonia. Vamos sair da música.
Imagine um ménage à trois literário com Machado de Assis, Rubem Fonseca e Clarice Lispector. Ou Monteiro Lobato, Érico Veríssimo e Saramago contando a mesma história. Ou Ferreira Goulart, Drummond e Fernando Pessoa sentados na mesma mesinha escrevendo poesia.
Nos sets e nos palcos, Fernanda Montenegro, Meryl Streep e Emma Thompson na mesma cena. Ou Paulo Gracindo, Paulo Autran e Marília Pêra nas ribaltas do céu. E pelos gramados, um ataque com Garrincha, Pelé e Zico. Quer voar no conhecimento? Einstein, Sabin e Freud trocando ideias.
Chega. É interminável a lista de três excelências juntas, tornando o inimaginável mais que possível: real. Pois Martin Scorsese conseguiu. Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci num mesmo filme. A simples presença dos três monstros sagrados provoca um burburinho respeitoso na plateia cada vez que eles vão surgindo, acho até que param de mexer no saco de pipoca. Não que os três sejam maiores que o filme em si, nada disso, mas as interpretações e o encaixe perfeito nos personagens – nenhuma surpresa – são hipnotizantes. Também não é surpresa o contágio que De Niro, Pacino e Pesci provocam no elenco inteiro, atores e atrizes que parecem incorporar a grandeza da trinca, cujas faces vão se transformando conforme a história se desenrola, num vai e vem de tempos e flashbacks, determinados pela fidelíssima estética dos anos 50, 60, 70, 90 e por aí vai.
Claro que a História do Cinema guarda exemplos em que três superatores e superatrizes do mesmo talento se encontram diante das câmeras. O próprio Scorsese já trabalhou com diversos grandes atores e atrizes que se tornaram grandes sob sua batuta, que desde 1967 vem orquestrando uma filmografia histórica, sempre privilegiando a excelência do seu elenco. Mas, dessa vez, com três gigantes do mesmo naipe e bagagem dramatúrgica, é sintonia rara. Em O Irlandês, a dose de talento consagrado é absurdamente equilibrada, o que faz a história ganhar fermento e consequente robustez. Scorsese soube catalisar esta reação química perfeita para gerar um filme alta magnitude.
Mais uma do nova-iorquino mais italiano da Big Apple e suas taturanas sobre os olhos. Scorsese não é de fácil digestão, sabe contar e fazer história. Soca estômagos e provoca taquicardia, deixa marcas. Sempre foi assim. Seus filmes são longos e densos, profundos e tensos, têm um estilo próprio de abordar épocas, biografias e situações históricas e comportamentais. É um conjunto de obras primas, comprometidas com fatos e pessoas que existiram, sendo que a menos trabalhada pelo marketing é uma das mais perfeitas: “Silêncio“, passado nas trevas do Japão Medieval, quando jesuítas portugueses catequizadores foram massacrados pela cultura budista local. Nada zen. História, crueldade, intolerância e cinema em toda sua plenitude. Vale ver.
Em O Irlandês, Scorsese aparentemente se repete no seu tema predileto: métodos mafiosos e matadores profissionais, mas como é um inquieto, mais uma vez inova na narrativa. Sua edição é original em si mesma, no seu jeito peculiar de contar fatos e vidas reais, retratar um recorte do tempo e deixar o espectador dentro da trama. Camadas de época se superpõem e começo eu a abordar o roteiro de trás pra frente. Só um pouquinho para dar um gostinho.
O líder sindical carismático e mafioso Jimmi Hoffa (Al Pacino) – cuja biografia já foi interpretada por Jack Nicholson num filme dirigido por Dani De Vitto – some misteriosamente aos olhos dos personagens, mas não do espectador. O fio condutor da chegada a este ponto fica por conta do olhar de Frank Sheeran (De Niro), um matador profissional determinado, tosco, que alterna ternura e frieza, veterano da Segunda Guerra, quando assimilou do Exército que matar é um dever a ser cumprido e obediência à sua missão é coisa soberana. Tal obediência cega e paradoxalmente conflituada ele deve a Russell Bufalino (Joe Pesci), um amigo de práticas mafiosas que a estrada literalmente lhe apresenta, e segue como uma fada madrinha de seus atos.
Há momentos de humor, melancolia, suspense, muito sangue espirrado, muita documentação de imagens de fatos marcantes que também fazem parte da construção da história. Adianto que a sequência em que Pacino e De Niro conversam de pijama num quarto de hotel é de uma verdade tão extraordinária que faz o espectador entrar na intimidade dos dois, como se pertencesse à cena. Um privilégio para os sensíveis à arte. E mais não digo. Deixo o impacto para as telonas, telas e telinhas – um inteligente e evoluído lançamento -semi-simultâneo em diferentes plataformas, só para mostrar que cinema bom é cinema bom em qualquer dimensão. Porque tem história. E tem direção. E tem atores bem dirigidos para levar a história. E assim se fecha a equação mais simples da excelência em dramaturgia: um texto, um diretor e um ator excepcionais.
Baseado no livro de Charles Brandt “I Heard You Paint Houses” (Ouvi que você pinta casas – frase de uma fina ironia, veja o filme e descubra a sutileza), escrito a partir de relatos do próprio Frank Sheeran, O Irlandês já recebeu a consagração da crítica antes mesmo de chegar ao público. Um ou outro crítico dos mais respeitados títulos norte-americanos lhe retiraram uma ou outra estrelinha das cinco estrelas máximas. Contraditoriamente, uns alegam lentidão e outros nem percebem a passagem das três horas e meia de duração, considerando o filme rápido demais, diante da trama épica da máfia e das corporações sindicais sujas e violentas. Nada de novo para quem conhece Scorsese. Ele sempre faz a velocidade baixa de seus filmes parecer um thriller às avessas, onde a adrenalina corre em marcha lenta, mas não desgruda o espectador da poltrona ou do sofá de casa.
Recentemente, Scorsese acendeu uma faísca polêmica: declarou que Marvel não era cinema, mas um parque de diversões. Bobagem. Cada um com seu cada um, a diversidade é respeitável; estilos não se excluem, entretenimentos sem pretensões podem ser bons e necessários, são complementares nos multi-entendimentos e desentendimentos da Humanidade. Mais tolice do que gastar saliva com tal imodesta declaração é a discussão sobre o advento do streaming alimentada nas redes sociais e acadêmicas, onde os mais exacerbados (e como existem!!!) se julgam proprietários de papel passado de suas verdades absolutas e bolas de cristal.
Melhor correr para o cinema ou assinar a Netflix. O Irlandês, com o esplendor de três dos melhores atores de todos os tempos, não é filme que se perca. Seja qual for a plataforma.
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