Crítica: Apocalipse V (V-Wars)

Duas das mitologias mais utilizadas no Cinema têm voltado com grande força já há alguns anos: vampiros e zumbis. O que, talvez, seja particularmente interessante em ambas são os diferentes usos que as narrativas propõem a estes seres. Assim como já vimos contos de zumbis lerdos e facilmente enganados, também já acompanhamos histórias destas bestas com uma força descomunal e quase impossível de ser vencida. Do outro lado, de vampiros que mais se assemelham a monstros noturnos passando a beldades incríveis prontas a caminhar na luz do dia, também estiveram em nosso leque de possibilidades. A nova série da Netflix, chamada Apocalipse V, parece juntar um pouco dessas duas mitologias ao nos oferecer um mundo infectado por alguma coisa que transforma as pessoas em algo próximo de um vampiro monstrengo que não consegue se conter, à medida em que vai perdendo sua natureza humana e deixando emergir as características mais sombrias desse ser das trevas.

Dr. Luther Swann (pelo bom ator Ian Somerhalder, de “Lost” e de “The Vampire Diaries”) é um grande médico pesquisador, que estuda tipos específicos de contaminações em seres vivos. Com uma vida tranquila, apesar de trabalhosa, consegue equilibrar seu ofício com o pequeno filho e a mulher. Mas seus dias são brutalmente abalados quando perde o contato com uma de suas estações de pesquisa, bem distante de onde mora. Ao tentar descobrir o que acontecera no local, Luther e seu amigo Michael Fayne (Adrian Holmes) são expostos a alguma substância responsável pelo desaparecimento do médico da base. No entanto, Dr. Swann não tem mais do que uma gripe forte como consequência. Já seu íntimo parceiro começa a sofrer alterações perturbadoras nos instintos mais triviais: olfato, visão, audição, sensibilidades das mais apuradas vão estressando Fayne, à medida em que uma impulsividade agressiva e dominadora passa a controlá-lo de maneira impiedosa. O desde sempre bom moço Fayne é impelido por si próprio no ataque a seres humanos, tendo como único objetivo sugar o quanto for possível do que a pessoa tem a oferecer. Perdido entre preservar o amigo e salvar a cidade (quiçá o mundo) de uma ameaça real, porém inimaginável, Luther deverá lutar contra todas as possibilidades.

Luther Swann em seu conflito maior.

A série demora um pouco a engatar, passando quatro capítulos muito semelhantes entre si, mostrando o aumento do número de infectados e a briga ideológica de Luther com o alto escalão do governo. O médico quer encontrar uma cura para o “vampirismo” que afeta a humanidade, sabedor de que os ataques à inocentes promovidos pelas novas “bestas” é mero instinto e não parte de um caráter deformado; já os manda-chuva do poder têm um único objetivo: abater tudo aquilo que surja como ameaça à segurança nacional e à sociedade (estamos a ver algo muito parecido onde vivemos, não? Mesmo sem ser vampiros; ou será que os manda-chuva do poder local consideram seus alvos como “vampiros sociais”? Interessante. Continuemos na série da Netflix por agora).  O embate ideológico é um dos grandes conflitos, mas não único, que Luther Swann enfrenta. Sua “América” começa a entrar em um colapso da civilização ao contemplar o que é por demais humano sendo colocado para fora. Besta por besta, o homem comum é muito mais animal do que um honroso baluarte do conhecimento, da inteligência, da evolução. O mundo se divide em dois: as bestas contaminadas (os ditos vampiros, mas que crucifixos, sol ou estacas nada interferem no estado comum deste ser) e aqueles que querem detoná-las (um outro tipo de besta: tanto em inteligência, quanto em caráter – o ser humano em seu estado comum).

Os “vampiros” começam a se ver como um estágio além na evolução humana. Mais fortes, mais rápidos e mais inteligentes, o único “problema” que eles têm é ter que se alimentar de seres humanos. Mas até aí, inclusive nós mesmos, precisamos nos alimentar de outros seres, só que, por nos considerarmos maiores, agimos sem qualquer abalo à moralidade. Porém, no duro, no duro mesmo, os “vampiros” estão apenas realizando uma parte natural da cadeia alimentar. Se no topo desta cadeia estava o homem, agora está o “super-homem”, esta nova espécie no desenrolar evolucionista darwinista. Uma luta de poder tomará conta da narrativa, colocando de forma bem marcada este conflito acerca da natureza humana. A característica narcisista e prepotente inerente a nós sempre é colocada em cheque quando o antagonista parece superior: seja ele um alien, seja um ser mitológico de extrema força. Em Apocalipse V, portanto, a figura do “vampiro” sofre uma pesada releitura e é abordada e explorada de uma maneira bastante inteligente em uma perspectiva muito mais científica do que meramente fantasiosa. Um dos grandes méritos da série, devo dizer.

Duas espécies: o homem e o além do homem.

Outro ponto positivo da produção é não focar em conflitos gigantescos em detrimento daqueles mais íntimos. Ainda que esteja a lutar contra uma possível extinção da raça humana tal qual a conhecemos (o que não seria de todo ruim, hein, Doutor Luther), o protagonista precisa equilibrar seus incansáveis esforços e esperança do retorno à normalidade (normalidade essa que fere muitos dia após dia) com a proteção de seu pequeno filho, o qual está perdido em meio a esse enorme trauma da Humanidade. O garoto, ainda muito jovem, também já guarda os dissabores de um vida que o obriga a ser forte, vivendo longe da problemática mãe e testemunhando o próprio pai atacar a madrasta que havia sido contaminada como os outros. Seja na tentativa de sobrevivência em relação à nova espécie, seja na reconstrução de si próprio a partir dos escombros psicológicos e emocionais, tudo aponta para o mesmo lugar: a tendência de Darwin ao colocar o mais preparado como aquele mais forte, capaz de se adaptar ao meio em que vive. E o meio em que vivemos nos impulsiona à força ou à nossa pessoal extinção.

Apesar de alguns capítulos não engrenarem diante de tantos elementos a serem explorados, apesar de alguns episódios se pautarem um pouco em muito do que já vimos, Apocalipse V traz um novo olhar sobre uma figura já batida (mas não esgotada) de nosso imaginário, de nossa literatura e também da cinematografia. Quando a série assume de vez sobre o que quer falar, consegue trazer à tona diversos assuntos urgentes e necessários, conseguindo impor um debate sincero e imprescindível, enquanto continua com suas sequências de ação, de drama, de suspense. Sendo tudo isso a um só tempo, e contando com o carisma e talento do belíssimo (em qualquer sentido) Ian Somerhalder, a obra se destaca pela forma como aborda as temáticas mais familiares de nosso dia-a-dia.

Uma espécie: homens além de homens.

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