Crítica: Atlantique
Atlantique é um filme produzido em associação de três países: França, Bélgica e Senegal. Curioso o fato de dois dos países mais cruéis em ações imperialistas na África estarem co-produzindo uma história que se passa em Senegal, onde o primeiro foi responsável por colonização, tendo por trás de sua invasão àquelas terras a plena necessidade de desenvolver, enquanto submetia os africanos a toda sorte de problemas presentes e futuros. Mais curioso ainda talvez seja o fato de a obra ser dirigida pela cineasta Mati Diop, nascida e criada em Paris, porém originária de uma família influente de Senegal. Portanto, a produção talvez seja a ilustração de todos esses elementos a um só tempo: realizada por uma francesa/senegalesa, vinda de uma família africana influente, tendo ao seu lado dois ricos países da Europa para trazer uma narrativa que aborda os conflitos sociais e emocionais de pessoas obrigadas a viverem na miséria, sendo exploradas por toda forma poder.
Ada (Mame Bineta Sane), apesar de prometida em casamento para um rico rapaz local, é apaixonada por Souleiman (Traore), com quem nutre uma relação aparentemente secreta. O garoto, longe de ser como o noivo de Ada, ocupa o outro extremo da cadeia alimentar social humana: é um operário e está empregado em uma construção de uma torre futurista que, no horizonte, cresce imponente em meio a um entorno extremamente pobre. O cenário é a representação não só do conflito pelo qual passa Ada, entre os extremos da riqueza e pobreza, para definir sua vida (o que para ela está previamente definido, pois diferente de suas amigas, ela é puro sentimento e nada interesseira), mas também do próprio país que abriga uma massa anônima de operários ou desempregados ao passo que sustenta famílias de grande destaque econômico e social. O drama de Ada, porém, aumenta quando Souleiman, sem seu conhecimento, decide resolver o ponto mais angustiante de sua vida: sem receber há três meses, juntamente com seu grupo, pela obra da torre futurista, a qual é edificada com suas mãos empenhadas e fortes, Souleiman e seus amigos decidem pegar uma embarcação em direção à Espanha, para – assim como tantos outros, aqueles que preenchem as notícias de nossos jornais noturnos – tentar uma vida diferente.

A ausência do grande amor de sua vida faz com que Ada seja consumida pelo sentimento de perda, sendo obrigada a ajustar os detalhes da cerimônia de casamento com alguém por quem não tem qualquer empatia. O grande destaque da narrativa aqui é a convicção de Ada ao não se colocar um preço, com a tentativa de mudar de vida por uma questão meramente monetária. Disposta a passar pelo que for para estar junto de Souleiman, Ada planeja ir atrás dele, mas encontra todas as dificuldades advindas de uma decisão como essa em uma sociedade na qual ela não tem muito poder de decisão. A história dirigida por Mati Diop, no entanto, não aborda tão somente a parte amorosa recheada por conflitos sociais. Em paralelo a isso, o empreiteiro da grande torre começa a ser ameaçado por um grupo de mulheres possuídas por espíritos que exigem que os operários sejam pagos. Essas duas partes do conto, apesar de não terem grandes conexões de início, são sutilmente costuradas uma à outra, em um desenrolar que vai cada vez mais enveredando pelos escombros de uma sociedade abandonada por aqueles que poderiam transformá-la do que por uma história de amor.
Com uma câmera descritiva, quase como uma testemunha do que ocorre nas sequências que acompanhamos, Mati Diop contempla os desgostos de seus personagens, a crueza das vielas por onde andam e por onde tentam sobreviver, os dramas que devem ser confinados no íntimo de cada qual, o abismo social que parece ser erigido tão imponente quanto a torre que se destaca em uma paisagem pouco convidativa. Mais do que lapidar uma narrativa de estrutura regular aos olhos do público mais acostumado, Atlantique se utiliza de seus elementos profundos para submergir o espectador em uma teia de relações emocionais, sociais e psicológicas que se sustenta por si só, ensaiando suas denúncias ao conseguir trazer um pouco dos conflitos pelos quais passam os membros de uma sociedade que, apesar dos séculos, não se acostuma (e nem deve) a uma submissão que diminui mais e mais sua expectativa a se esconder em um horizonte dominado pela realização de outros, daqueles que estão acima.

Ainda que não seja o lugar de fala de Mati Diop, de família influente, nascida e criada em Paris, a diretora soube se utilizar de uma empatia e sensibilidade para mergulhar em uma história que poderia ter sido a dela. Os personagens que falam, que berram, que tentam são possibilidades que, em algum momento, surgiram em um horizonte de expectativas antigas de Diop, mas que puderam ser visitados tão somente enquanto Arte e não enquanto vida. De todo modo, é louvável que, apesar do afastamento dadas às circunstâncias, Diop tenha se utilizado de seus recursos para dar voz àqueles que são escondidos pelas poeiras das construções e pelas migalhas dos homens de poder, europeus ou africanos.
Leave a Comment