Crítica: História de um Casamento (Marriage Story)

“Alguém que precise muito de você, alguém que te conheça bem demais, alguém que te tire o fôlego e te jogue num inferno e te ajude a estar vivo, estar vivo”. Só quem já passou por um divórcio sabe o peso que essa experiência tem sobre um ser humano. Mas, ao ouvir Charlie (Adam Driver) cantar as lindas e tristes frases de Being Alive, de Stephen Sondheim, até mesmo o mais convicto dos solteirões vai sentir a dor e as delícias que um casamento gera.

História de um Casamento, de Noah Bambauch, é, indiscutivelmente, um dos melhores filmes do ano e, talvez, a maior realização do extraordinário diretor e roteirista. Se no tocante “A Lula e a Baleia (2005) o fim de um casamento tinha suas entranhas expostas na perspectiva dos filhos, agora o foco se lança ao próprio casal. Charlie e Nicole (Scarlett Johansson) são apaixonantes e feitos um para o outro. Ele, um diretor criativo e ousado de teatro. Ela, uma intensa e talentosa atriz de sua companhia. Ao ouvir os dois lindos monólogos que abrem o longa, nos quais cada um dos protagonistas fala das coisas no parceiro que fizeram com que ele se apaixonasse, o espectador sorri embevecido. Mas já toma a primeira porrada na cara quando vê que aquela é uma narrativa sobre o fim de uma história.

Não é à toa que o filme esteja gerando um barulho grande e catando pilhas de prêmios na temporada. Aliás, há quem já aposte na obra pro Oscar de melhor filme (a indicação já é certa). Tudo funciona lindamente nele. Tudo. E o que mais funciona é a sua alma. Tocante, profundo e sensível são três adjetivos que, embora se ajustem bem a ele, não dão conta totalmente da experiência que se tem ao assisti-lo.

O roteiro primoroso estabelece uma base poderosa. Em uma mesma cena vai-se da comédia ao drama, através de frases lapidares e uma elaborada construção de cenas. Os diálogos precisos, seja nas situações de embate ou nos momentos mais ternos, extraem poesia do prosaico e enchem a narrativa de reflexão. É difícil não se remeter a uma outra obra-prima sobre o tema, tanto pelos aspectos conceituais quanto pela qualidade, o maravilhoso “Cenas de um Casamento”, de Ingmar Bergman.

Bambauch é famoso por ser um cineasta dono deste olhar capaz de ver a grandeza (linda e terrível) das miudezas do cotidiano. Aqui, esse olhar passeia pelas vísceras do relacionamento de Charlie e Nicole através de uma câmera que se move muito pouco ou de forma bem discreta, como se não quisesse distrair o espectador com malabarismos e pirotecnias técnicas. Sua câmera é uma testemunha silenciosa, atenta e, acima de tudo, compassiva. Só um diretor no auge de sua forma consegue o milagre de humanizar a própria câmera.

E a humanização da câmera se espraia para os outros aspectos da produção. A edição, por exemplo, soa quase como que orgânica, no sentido mais biológico do termo. A edição vai em ritmo de respiração do filme, compassada na maior parte do tempo, mas agressiva e contundente nos momentos em que o ar falta em cena e a respiração se desespera.

Óbvio que toda essa carga de humanidade há de se se manifestar com toda sua força nas pessoas que vemos na tela. E a palavra pessoa atinge uma completude quase etimológica. História de um Casamento nos leva às raízes da palavra. De um lado, a origem mais longínqua, o termo grego prósopon, que significa “aspecto”. A sensibilidade do longa é tamanha que se apresentam as várias camadas de sentimentos e idiossincrasias que nos marcam enquanto seres viventes. Embora centrado no casal, o longa não se furta a penetrar nas redes e elos que um casamento cria também com os que circundam o casal, as famílias, o filho (um achado, aliás, o fofíssimo e esperto Azhy Robertson), os amigos, os terríveis advogados.

Por outro lado, também se evoca o termo latino persona, que servirá para nomear as máscaras do teatro e as próprias personagens. O filme é uma master class de construção de personagens. Sem precisar recorrer a didatismos ou facilitações, é o que se vê (e muito o que escuta) em tela que fornece o material completo para enxergar cada uma delas como unidades de sentido em si mesmas e nas relações que estabelecem umas com as outras. A cena de apresentação de Sandra ( Julie Hagerty), a mãe da protagonista, por exemplo, consegue criar em poucas falas uma visão clara de quem ela é e de todo o subtexto que a circunda. Master class.

Com um material desses e uma direção em potência máxima, o elenco faz a festa. Os coadjuvantes se destacam em performances sólidas e esmeradas. Além da já citada Julie Hagerty, é uma delicia também ver a atuação do “núcleo de advogados”, com a sempre excelente Laura Dern, um inspirado Ray Liotta e o veterano e impecável Alan Alda, de cuja boca sairá uma das falas mais representativas do roteiro ao dizer que advogados criminais veem pessoas ruins no seu melhor e advogados de divórcios veem pessoas boas no seu pior.

Os protagonistas, senhores, formam uma das duplas mais totalmente excelente do cinema. Scarlett Johansson e Adam Driver arrasam em cada shot juntos ou separados (trocadilho acidental). É uma entrega plena do par aos seus papéis e é também uma demonstração da força e da técnica de dois atores no melhor de suas formas e domínio do seu ofício. Ela faz Nicole através de um caleidoscópio de sentimentos que se revelam até mesmo na expressão corporal e na inflexão de voz. Ele mostra o porquê de estar sendo um dos atores mais incensados da atualidade. Seu Charlie expõe uma vulnerabilidade tão verdadeira, uma emoção tão crua e real. E, já tinha tempo que este crítico não falava disso, mas, leitor MetaFictions, Mr. Driver é um daqueles que domina a “atuação de olho”, a capacidade de dizer tudo sem palavras, bastando ao espectador olhar para os olhos dele e entender tudo. É de fazer chorar de tão lindo.

Ao fim de História de um Casamento o que fica é a certeza de que vimos uma obra-prima e uma tristezinha doída e gostosa que machuca o nosso coração, mas que também consola por mostrar como os nossos afetos e, acima de tudo, os nossos amores nos engrandecem. A mim ele também fez recordar um trechinho de uma carta triste e bonita na qual Fernando Pessoa escreve a um ex-amor e enche de poesia e beleza, tal qual Bambauch em seu filme, uma das nossas experiências mais sofridas. Vejam:

“ Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil”. 

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